Pra quem já sabe, existem filmes insatisfatórios realizados com a obra de Ernesto Sábato, Jorge Luis Borges e Aldofo Bioy Casares, os quais apesar disso são os escritores argentinos mais reconhecidos no estrangeiro – vale a pena dedicar horas de estudo aos seus livros na mesma proporção que não vale nada procurar por esses filmes. Com a presença do pop literário, a época da televisão marcou os anos dourados para os autores argentinos que conseguiram vender seus livros, e depois levaram ao cinema as novas versões enlutadas das suas obras, em alguns casos não só em filmes de baixa qualidade que pretendiam chegar à grande audiência, senão também com aquelas estrelas das novelas que faziam sucesso na época.

Não era bom continuar assim. O cinema argentino, ainda uruguaio, humilde como o Mujica, deixava ouvir um colectivo passando do lado de fora para abafar as vozes dos atores, e com a intenção de transmitir algo poético. Manuel Puig foi um caso excepcional (e um ícone do pop) com O beijo da mulher aranha, romance levado ao cinema por Héctor Babenco, um argentino naturalizado brasileiro.

Nos anos noventa, apesar das inovações técnicas, o caso emblemático de romance bom transformado em filme ruim foi Uma noite com Sabrina Love, do escritor Pedro Mairal. Na década desse livro, com ajuda do Puig, parece que os autores sentavam na frente da TV e, zapeando, copiavam esse universo sensual e desesperante, com os olhos em busca do telespectador.

Quem leu Cesar Aira pode ser que nunca volte desse trip quadrangular; Fogwill, por exemplo, era um sociólogo que viveu pescando conceitos nas águas do marketing. Foi outra época com suas novas conquistas, e hoje isso fica muito mais claro, já que tem pessoal que anda por aí dizendo que o fim do fim de essa época já chegou. Assim localizados, tudo que era livro de massas – stakeholders – acabava na telinha, graças à esperança de um grupo de empresários da mídia que apostavam em algumas exceções nacionais, definindo novas identidades lascadas, e em conjunto com todos os produtos que eram lançados como livros.

Muitos desses livros hoje em dia estão empilhados em bibliotecas populares, que no país hermano são como as paróquias com a roupa usada, mas com livros, como uma recente antiga religião, e ninguém se lembra deles – não é necessário conhecer bem o que têm “por dentro”. São livros feios, importados, com mulheres quase nuas nas capas ou semelhantes imagens pós-ditadura, com milhares de páginas e com uma letra que até o Borges poderia ler de longe. Hoje esses livros tocam sua obsolência definitiva: o futuro primitivo das redes sociais, que além de influenciar em aquilo que para si mesmo é uma linguagem própria, também foi parar em coisas mundanas, como – de novo, entre outros objetos – os malditos livros. Os blogs, às pressas, viraram fósseis modernos.

Hoje em Buenos Aires são furiosas as tentativas de puxar da internet (como antes na tela – Juan Terranova discute muito bem com Alan Pauls o fenômeno blooks) livros que, de alguma forma, possam dar ao leitor algo daquilo que se perde nessa transformação, e nada querem carnalmente com os livros, inclusive dão algumas vantagens gratuitas: como os comentários, a possibilidade de editar os textos infinitamente, e, o mais importante, sempre a ideia de que ele possa ser lido por outras pessoas que não são familiares ou amigos – para ver a correção infinita da literatura, sua nova inclinação, de novo: Borges. Agora, quase entre a foto do papai e a da viagem ao Brasil ou a Europa, aparece o livro próprio de quem escreveu e publicou na internet. As resenhas, os encontros, os novos amigos. Publicar, escrever, logo publicar de novo. Foi por isso que essa década de literatura, mais que uma época de grandes autores, virou uma época de grandes pequenas editoras na cidade, grandes grupos de escritores amigos e inimigos, grandes eventos de literatura, com gente bêbada e drogada, ou fingindo, tudo em contraste com aquela imagem do leitor da internet que lê e faz a sua sozinho com a luz apagada. Quem faz isso nunca ligou a sua própria máquina.

Um caso de “máquina” (em espanhol rio-platense, máquina também significa “fera”, “amigo”) é o editor Lucas “Funes” de Oliveira, da Editorial funesiana, “a segunda editora mais pequena da America latina”: as tiragens dos seus livros são realmente pequenas, feitas em xerox, e os escritores quase todos inéditos. Isso na cara das corporações, ninguém lhe nega isso. Em ciclos literários como Los Mudos, por ele comandados, os escritores além de participarem lendo suas obras em voz alta, nesse caso especial são parte do processo de fabricação do livro. Um verdadeiro sonho da independência econômica, sem desperdícios. Na década da sua editora foi que os argentinos voltaram a encher a boca de peronismo, que não é mais uma doutrina de velhos barrigudos de tanto comer churrasco nas suas quintas, senão um movimento popular histórico nacional vivo que deu à juventude novas lideranças, e que se reúnem na praça de Mayo, muito antes dos manifestantes autônomos mobilizados pelas grandes mídias, em especial o jornal Clarín.

O mercado argentino dos livros deixa milhões de pesos em postos de trabalho, e pareceria que nada tem a ver com os escritores de uma editoria independente. Mas a amizade põe a comida no prato, e para um argentino tem a mãe da amizade, a Lealdade (celebrada pelo peronismo o 17 de outubro). É que a amizade acontece do lado das grandes livrarias, e por isso é que ele mesmo tornou-se um apóstolo.

Hoje em dia Carlos Godoy reedita aquela velha obra que publicou na editorial do seu amigo “Funes”, a Escolástica Peronista, mas agora com projeção nacional, além dos nacionalistas, e com ilustrações do experto Daniel Santoro. Ele é quem ilustrou a obra de Juan Incardona, um livro de contos intitulado Villa Celina, nome da localidade do grande Buenos Aires onde nasceu. Incardona também começou “do nada”, com uma editora pequena, e teve logo a sua obra reeditada e bem recebida. Outros autores que vale a pena mencionar são Ignacio Molina (que escreveu os contos de Los estantes vacíos) e Natalia Moret (cujo livro Un publicista en apuros será levado ao cinema), escritores que levaram aplausos dos mais diversos setores do periodismo cultural.

O futuro disso aparece com a autora Violeta Kesselman, quem entra em recente polêmica com o circuito de escritores já difundidos. Através do universo da política ela faz a sua crítica aos autores da facção do Carlos Godoy, para ela um autor de direita. Godoy, em reação a polêmica lançada, respondeu: “não vou dizer nada, sou um cavalheiro respeitoso, em especial com as mulheres”, palavras que parecem copiadas do governador Daniel Scioli, que respondeu assim a Malena Massa, esposa do candidato neoliberal Sergio Massa, que soube ganhar em vários distritos kirchneristas nas últimas eleições.

Sobre o colaborador: Rodrigo Arreyes nasceu em San Martín, no Grande Buenos Aires, em 1985. Viveu muitos anos em São Paulo, onde em parte se alfabetizou, e estudou Letras na UBA. Participou da Antologia Outsider I (Editorial Outsider) e em 2012 publicou a nouvelle “Manifestación de todo lo visible” (Editorial Simulcoop). Foi mecânico e borracheiro em El Palomar e atualmente trabalha como tradutor e cuida da sua pequena filha. Escreve em @fideosmanteca.