Não é comum encontrarmos histórias em que o protagonista seja um velhinho meio ranzinza e antissocial, como o Otto de Noites de Alface. Ranzinza e antissocial, sim, mas simpático. Mesmo depois da morte da esposa, Otto não pede consolo aos vizinhos – nem aos leitores, o que no entanto de nada adianta para conter nossa vontade de nos insinuarmos para descobrir, despistadamente, a quantas anda. Aprovamos quando ele deixa que Nico, o enciclopedista das bulas, entre na casa amarela, e fazemos que sim com a cabeça quando ele decide atravessar até a casa de Teresa para lhe entregar a carta extraviada. Afinal, nos envolvemos nesse suspense que percorre o livro desde a primeira página: Otto se recupera do luto?

Não é comum também encontrarmos pessoas como Otto na vida real. De acordo com os dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, existem no Brasil, entre os viúvos, quase cinco mulheres para cada homem. O padrão se repete em outros países: são sempre mais raros os casos de homens vivendo sozinhos depois de perderem a esposa. As causas dessa disparidade são conhecidas: as mulheres vivem mais, casam-se em média com homens mais velhos e têm uma menor tendência a se unirem novamente em matrimônio. Mas apesar da menor quantidade absoluta de velhinhos viúvos, pesquisas feitas na Europa e nos EUA apontam para um fato inesperado em relação à viuvez: os homens sofrem mais.1

Se essa conclusão parece ir contra o senso comum, isso se deve, em primeiro lugar, à já mencionada desproporção nos gêneros entre os viúvos, que faz com que nos lembremos muito mais facilmente de senhorinhas abatidas pela perda do cônjuge que das situações inversas. Além disso, quando tomados, por exemplo, os casos de depressão crônica, percebe-se que sua frequência é naturalmente maior entre as mulheres, de qualquer grupo, sejam elas solteiras, casadas ou viúvas. Com isso, considerados apenas os números absolutos, criamos a imagem de que os homens lidam mais facilmente com a viuvez, quando na verdade, ao serem isolados todos os demais fatores, essa perda parece ter, por si, um impacto maior na saúde deles.

Para que fique mais claro: em toda essa discussão, entenda-se por sofrimento desde um mal-estar prolongado e uma maior incidência de transtornos mentais até um impacto direto sobre a longevidade. As causas de morte podem ser variadas, mas a expectativa de vida dos viúvos, quando comparada à dos homens casados em condições semelhantes de nível de renda, escolaridade, faixa etária, etc., tende a ser menor. Uma evidência clara vem das taxas de suicídio, que foram estimadas numa pesquisa como sendo 5 vezes maior entre os homens viúvos do que entre as mulheres na mesma situação, quando comparados aos casados.

No entanto, as causas para essa má adaptação masculina à solidão pós-matrimonial não foram ainda bem estabelecidas. A justificativa mais comum vai no sentido de que os homens se beneficiam mais do matrimônio2. Em geral, diriam os psicólogos, as mulheres tendem a ter um círculo mais amplo de relações afetivas próximas, enquanto os homens costumam ter apenas suas esposas como apoio. Seriam situações semelhantes à de Otto, isolado dos vizinhos, sem amigos, sem pessoas que o visitem, irritado por uma simples lâmpada queimada.

 

Afinal, devia começar as camisas pela manga ou pelo colarinho? Era preciso operar pelo lado avesso ou não fazia diferença? Como agir quando há vincos impossíveis de serem alisados – borrifar água ou álcool? Lavar de novo? E os botões, será que se corre o risco de derretê-los?

 

A perspectiva quanto à melhora de Otto não parece boa durante a história. Embora ele, às vezes, comece a mostrar interesse pelos problemas da vizinhança, cada pequeno avanço parece ser contrabalanceado por uma reação em sentido inverso. Se pensa em algo curioso para comentar com Nico, logo se arrepende, e lamenta ter incentivado seus animados comentários sobre o universo das doenças e dos remédios.

Mais grave parece ser sua insistência em refletir negativamente sobre a sua condição. Na literatura científica especializada existe um nome próprio para isso – o que costuma ser por si só um mal sinal: diz-se uma “maneira ruminativa de lidar com a perda”, ou seja, uma tendência a se envolver em pensamentos e comportamentos que mantêm o foco nas emoções negativas e nas possíveis causas e consequências dessas emoções3.

 

Agora Otto sofria de uma insônia infinita. Os maus pensamentos permaneceriam para sempre, pois nunca mais haveria manhãs – agora, toda noite era de alface. E Otto odiava vegetais folhosos.

 

A ruminação, apontam os estudos, é um dos fatores correlacionados ao prolongamento do período depressivo. Felizmente – e acho que não cometo nenhum grave spoiler ao comentar isso – Otto mostra sinais de recuperação ao final. Um progresso que não chega a ser atípico se comparado aos seus correspondentes do mundo real, uma vez que na grande maioria dos casos de perda do cônjuge, sejam homens ou mulheres, os viúvos tendem a uma melhora gradual de ânimo, sem que se forme um quadro crônico de trauma4.

Mais interessante é a maneira como esse processo de recuperação se inicia na história. Nos estudos mais recentes da psicologia do bem-estar existe uma desproporcional consideração por esta palavra: foco. Investigam-se, por exemplo, as “ilusões de foco”, os modos pelos quais um julgamento feito dentro de um campo mais amplo se altera quando a concentração se prende a apenas um dos elementos.

Em um curioso artigo chamado “Viver na Califórnia faz as pessoas felizes?” 5, os psicólogos David Schkade e Daniel Kahneman mostraram que não houve diferença sensível nos níveis de satisfação geral com a vida entre moradores da Califórnia e do Meio Oeste americano, mesmo que ambos os grupos acreditassem que a vida na Costa Oeste fosse mais agradável. A explicação proposta envolve uma ilusão de foco: imaginar o sol, as ondas, o vento da Califórnia, tudo isso cria uma lente pela qual a própria vida promete ser mais positiva.

Obviamente, o processo contrário também é possível. Um foco limitado por emoções ou percepções negativas pode contaminar nosso julgamento em outros campos. Temos um exemplo clássico à disposição, repetido em todas as gerações de adolescentes com corações partidos, que se lamentam de suas primeiras decepções clamando aos céus que “a vida não faz mais sentido”.

Para Otto, ainda é muito cedo para que consiga repelir os pensamentos negativos que se associam às lembranças da esposa – na história, pouco mais de três meses se passaram desde a morte de Ada. Nem podemos esperar uma recuperação expressa depois de cinco décadas cozinhando juntos, montando enormes quebra-cabeças e jogando pingue-pongue nos fins de semana.

Ainda assim, quando Otto, a certa altura, reconhece que foi capaz de, pela primeira vez, se concentrar em algo diferente que não a perda de Ada; quando ele percebe que existe um mundo mais amplo, podemos acreditar que há aí um pequeno – porém, crucial –passo para que ele volte a ser um velhinho rabugento e recluso, mas um pouco mais feliz.

 

Apesar de tudo, havia um mundo de baiacus lá fora, de lulas neurastênicas e mergulhadores com vontade de fazer xixi […]

 

 

  1. Stroebe, M., Stroebe, W., & Schut, H. (2001). Gender differences in adjustment to bereavement: An empirical and theoretical review.
  2. Wortman, C., Boerner, K. (2006) Beyond the myths of coping with loss: Prevailing assumptions versus scientific evidence.
  3. Nolen-Hoeksema, S. (2001). Ruminative coping and adjustment to bereavement.
  4. Bonnano, G., Mancini, A. (2008). The human capacity to thrive in the face of potential trauma.
  5. Schkade, D., Kahneman, D. (1998) Does living in California make people happy? A focusing illusion in judgments of life satisfaction.