Enquanto assistia a A grande beleza, a primeira pergunta que me veio à mente foi: por que Paolo Sorrentino não me era um nome mais familiar? Certamente aquele era o filme de um grande diretor, do tipo que é favorito em Cannes há muitos anos, por que eu havia deixado o nome dele passar? Por que não podia citar de cabeça nenhum de seus filmes? A resposta é que, surpreendentemente, talvez esse seja seu primeiro filme relevante.

Seu filme de 2004,  As consequências do amor, foi indicado à Palma de Ouro, mas não causou o mesmo entusiasmo na crítica que o longa atual. Seu último trabalho, Aqui é o meu lugar, é um filme competente, mas perfeitamente esquecível. 

A grande beleza é um caso totalmente diverso. É maduro, ambicioso, seguro a ponto de seguir fluindo apesar de seus defeitos e, eventualmente, encontrar-se e se tornar uma grande obra. É um filme de autor, ainda que seu maior defeito seja a sombra de um outro autor.

Acredito que nenhum cineasta poderá pisar os pés em Roma sem se voltar para Fellini. Woody Allen não esteve imune e Para Roma com amor acabou como uma homenagem pálida, um diretor de pessimismo e misantropia notáveis tentando imitar o grande otimista do cinema. Sorrentino se sai melhor ao absorver a atmosfera de tragicomédia e melancolia poética que Fellini conferiu à cidade, mas se sai tão melhor que, durante toda a primeira metade, o filme incomoda por ser felliniano demais.

O filme abre com a mesma câmera sem rumo de Roma, andando por ruas, observando personagens típicos no restaurante, sendo levada pelo ritmo da cidade até aterrissar na festa do protagonista, Jep Gambardella. Jep é um jornalista e escritor de um só romance, publicado muitos anos atrás e criticamente aclamado, que lhe abriu as portas da alta sociedade intelectual romana, onde ele agora passa suas noites. Gambardella sai demais para escrever, vive o vazio bem demais e se nem Flaubert pôde escrever um livro sobre o nada, por que ele poderia?

O vazio é o grande tema de A grande beleza. Seus personagens ricos intelectuais que discursam belas palavras que não querem dizer absolutamente nada, frequentam festas cheias de álcool e cocaína onde ninguém parece estar se divertindo de verdade e são incomodamente conscientes da própria situação – Gambardella mais do que qualquer outro. É fácil entender o apelo do filme de Sorrentino após identificar sua temática: o artista que aponta um dedo ácido para a superficialidade de sua própria classe, o jornalista visto como apenas o oportunista que vaga pela boa vida de Roma. Entretanto, essas histórias já foram contadas, em 8 ½ e A doce vida.

Ser influenciado por Fellini é sempre algo problemático. O diretor é idiossincrático demais, específico demais, seu universo tão seu que o termo “felliniano” chega mesmo a escapar do cinema. É difícil digerir sua influência e muitas vezes a tentativa de homenageá-lo soa como imitação.

É isso que acontece durante a primeira metade de A grande beleza. A mulher que aparece na festa de Gambardella é a Mama do cartaz de Roma e todas as outras se parecem com suas prostitutas. A sequência no consultório do médico é incomodamente paralela ao desfile de moda eclesiástica.

Há, claro, momentos em que a homenagem funciona, como o plano que faz a atriz conceitual lembrar a Saraghina de 8 ½, ou a breve aparição de Fanny Ardant, uma Anita Ekberg envelhecida, em um filme que parece querer ser a atualização do universo de Fellini.  A impressão que me ficou é exatamente essa: Sorrentino buscava fazer um Roma, ou A doce vida, contemporâneo.

Contudo, a partir do momento em que Jep encontra Ramona, uma stripper velha demais para a profissão, o objetivo parece se transformar, a sombra de Fellini diminui e diretor e personagem chegam a se fundir. O escritor, como o cineasta, buscam justamente a essência da beleza, a pureza daquilo que ainda pode existir em uma arte capaz de movimentar o ser humano. O protagonista é menos cínico do que parece: não escreve porque não se sente à altura do que realmente merece ser escrito.

Com essa mudança, A grande beleza torna-se quase uma obra prima. Jep Gambardella ganha profundidade e o filme se reveste de um ritmo mais lento, de leveza e poesia e, finalmente, de identidade. Sorrentino deixa de ser um diretor executando com precisão o estilo de um outro para tornar-se autor e um grande autor. Há violência e delicadeza em seus planos, acidez em seus diálogos e humanidade em seus personagens.

É encantador e raro encontrar um momento em que o cinema realiza todo seu potencial. Em que um filme, mesmo falho, é capaz de condensar ideias e intenções em imagens que se movimentam . Há dezenas de filmes imperfeitos e memoráveis, e A grande beleza é um deles. Seu maior erro é a falta de originalidade, o excesso de Fellini, certa obviedade da narrativa proustiana, o clichê da representação da primeira namorada de Jep, mas mesmo não sendo único ou surpreendente, é algo belo, tocante, profundo.

Talvez a perfeição da técnica de Sorrentino e a aparência de maturidade de seu filme o prejudiquem: se pensarmos que sua carreira ainda não é tão longa, que este é seu primeiro grande filme, o que temos é um diretor excepcional a quem só falta encontrar a própria voz.