Praticar poesia não é tarefa fácil. Ela parece alimentar-se da espontaneidade em seu mais puro espírito, mas quais significados planejadores não se escondem por detrás da palavra “metrificação”? Ao mesmo tempo, se concebida somente em termos de números de sílabas, função de rimas e disposição de versos e estrofes, certamente perde uma das suas substâncias mais essenciais.

Por isso é que, diante de um livro de poesia, tendo a assumir uma postura um tanto mais respeitosa, inclusive por não ser um leitor costumeiro de poesias.

Este foi, portanto, o espírito com que adentrei nas páginas de Meu passo, seus passos, livro de poesia escrito a quatro mãos por Avenir Passo de Oliveira e Camila Tapia Passos de Oliveira. Metade do livro é composto pelos poemas de Avenir, e a outra metade pelos poemas de Camila. Parte daquilo que torna a obra interessante é o fato de que Avenir é pai de Camila, uma relação de parentesco que se mostra essencial para compreender a extensão e a profundidade da maioria dos poemas.

Ao que consta na orelha do livro, Avenir tem formação no campo do Direito, sendo, inclusive, doutor na área. Camila, por sua vez, se embrenhou na área de Jornalismo, Letras e Comunicação social. As marcas de uma e de outra formação aparecem na obra em momentos específicos, mas o que realmente ocupa a posição central no palco onde se desenrolam os versos é a família e o mundo de sentimentos que os dois poetas cultivaram no seio desta.

Especialmente para Avenir, que não tenta esconder os arroubos de amor e admiração pelos filhos e esposa, a família é o repositório de experiências, sensações e sentimentos dos quais se nutre sua poesia. O amor pela mulher é sucedido pelo orgulho paternal pelos rebentos, que, por sua vez, é seguido pelas transbordantes adjetivações que ele invoca para cobrir todo este terreno espiritual.

Para Camila, embora a família esteja presente – nos versos, nas entrelinhas ou no próprio paratexto –, as explorações de outros temas acaba por constituir parte importante de seu repertório. O amor e sentimentos mais lúgubres como a angústia e o desilusão, por exemplo, fazem parte daquilo que ela busca cotejar.

Os pontos altos de Avenir vêm quando ele escreve usando aquele típico jargão jurídico, com direito a latim e tudo, em que a rigidez da linguagem dos autos e das leis deixa entrever aquelas substâncias humanas mais calorosas. O Poema da suspeição é um exemplo disso, eis a primeira e a segunda estrofes, a título de demonstração:

Há exceção de suspeita,
Se há suspeita de exceção,
O excepto não se sujeito,
A qualquer alegação,
De quem a lei não respeita,
E se inepta a petição.

Se há suspeita de exceção,
Há exceção de suspeita,
O excepto não se sujeita,
A qualquer alegação,
De quem a lei não respeita,
E se inepta a petição (p. 28)

O poema segue nesta toada quase até o fim, alternando as ordens das palavras e o sentido dos versos para construir sua sonoridade e seus sentidos obscuros.

Quando fala da família, do amor, do sentimento de orgulho, calor e felicidade que encontra no seio do lar, a poesia de Avenir perde parte importante de sua força, pois aqueles elogiosos versos, para quem não pertence àquela família, não possui tanto apelo quanto para aqueles a quem foram dirigidos. Do seio da família nasceram, portanto estão umbilicalmente referenciados a esse ambiente, para o bem e para o mal.

Com Camila, não são as abundâncias vocabulares que tomam a cena, mas o tiro curto, de poucos e pequenos versos, justamente onde se encontra, em minha opinião, seu maior potencial. Isto se dá, entre outras coisas, porque ao limitar a extensão e mesmo o número de palavras, Camila força cada uma delas a conter em si aquilo que não foi dito, investindo-as de muito mais potencial semântico-filosófico. Exemplo disso é o singelo mas intrigante Passado futuro, futuro passado:

Ah…que saudade
do que foi e não volta mais
e do que poderia ter sido,
mas não foi.

Vivo de passado e de futuro.
O presente não me alimenta.

Sou toda lembranças
e esperanças. (p. 88)

Ainda que esse poema carregue muito daquele estigma do poeta como ser conectado a realidades etéreas, tenho de admitir que há algo de redondo nesse fechamento. Algo semelhante acontece com A mesa, o vaso e a poeta, que apesar de um pouco didático, consegue transmitir uma concretude maior à visão do poeta sem deixar-se enganar pelo vazio:

Havia num centro descentralizado
Uma mesa vazia.

Havia acima da mesa
Um vaso vazio.

Havia defronte a ambos
Uma poeta que via além do vazio. (p. 94)

É justamente quando abandona certas características tidas por alguns como requisitos básicos de um poema, tal como a rima, que Camila consegue encontrar mais liberdade para se deixar levar pelas palavras. Quando o apego às rimas permanece, certos versos soam forçados, como esses:

Tantos os desafios que encarou,
Que aprendeu a não se curvar fácil.
Forte e potente armadura arrumou,
Ficando meio sem jeito com o grácil (p. 86)

ou esses:

Mostram almas fabulosas ou cinza-aço,
Permitindo-me tanto refletir.
Com os empáticos crio irrompível laço,
A amizade passando a sugerir. (p. 104)

Em se tratando de pai e filha, creio que os poemas tenham significados profundamente distintos para aqueles que fazem parte desse círculo familiar e para aqueles que, como eu, leram os poemas sem conhecer o cotidiano da casa dos Passo(s). Essa marca de origem torna alguns poemas muito abstratos, por se referirem a sentimentos muito gerais, ou sujeitos cujas feições físicas e espirituais só podemos imaginar. Isto faz com que alguns versos venham à tona sem mergulhos subversivos, combinações inusitadas ou sonoridades curiosas.

O fato de se tratar de pai e filha empresta interesse à comparação dos poemas que um e outro fizeram a respeito de seus antepassados, pois encontram em suas distinções marcas idiossincráticas e a própria evolução do tempo, através das gerações. Além disso, quando em algum verso Camila fala de “pai” e Avenir de “filha”, sabemos haver um diálogo entre sujeitos que convivem e escrevem juntos, enriquecendo ambas as poesias.

Apesar das restrições que enfrenta por conta dessa raiz familiar e por conta da fidelidade a certos recursos poéticos, os poemas de Meu passo, seus passos – o título é muito feliz – encontram momentos de sensibilidade e de acerto.