O quartinho, geralmente pequeno, pouco arejado e escondido no espaço residencial, é um elemento simbólico das práticas de desigualdade e exclusão que envolvem aquelas que exercem a profissão de empregada doméstica. Tão comum nas casas e apartamentos das classes alta e média nas metrópoles brasileiras, tal quartinho delimita a fronteira entre o “nós” e o “elas”, mesmo que muitas vezes a faxineira, babá ou empregada seja considerada “quase da família”. Não nos enganemos: o “quase” aqui não é mero apêndice, mas finca uma distância, pois quem é quase, de fato não o é.

Que horas ela volta?, filme nacional dirigido e roteirizado por Anna Muylaert, é mais do que um filme: é uma tese. Seu discurso envolve análises sobre o comportamento das elites metropolitanas e a desigualdade brasileira, mas também sobre algumas das mudanças sociais em curso no Brasil nessas últimas décadas. Quase como que seguindo um modelo de artigo acadêmico, divide-se em partes bem delimitadas, com uma introdução que revisita as estruturas de hierarquia como já as conhecemos, passando à chegada de um elemento novo que desagrega e incita mudanças, depois à tomada de consciência que leva a novos comportamentos – provocando reações dos que querem conservar a velha ordem – e assim por diante, até uma conclusão que se permite otimista e até mesmo, por que não, com um quê de poética.

Nessa história, acompanhamos a rotina de Val (Regina Casé) enquanto empregada doméstica de uma família rica do Morumbi, com destaque às relações afetivas que ligam as personagens: o carinho pelo adolescente Fabinho (Michel Joelsas) e o total respeito e subserviência à “dona” Bárbara (Karine Teles), uma espécie de socialite, e “seu” Carlos (Lorenço Mutarelli), um artista encostado. Val trabalha há décadas com essa mesma família, tendo sido babá na infância de Fabinho e agora, mais velha, servindo como doméstica. Porém, a dinâmica das relações muda à medida que a filha de Val, Jéssica (a excelente Camila Márdila), chega de Pernambuco para passar um tempo com a mãe, enquanto se prepara para o vestibular.

Jéssica é a antítese da mãe, renega o comportamento subserviente e não aceita “ser tratada como uma cidadã de segunda classe”. Ela também tem um sonho, logo visto com descrença e certa zombaria pelos patrões de Val, que é passar no vestibular da USP e tornar-se aluna da temida, ótima e elitista FAU, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.

A menina, pobre e migrante nordestina, ousa sonhar, ousa falar, encarar, ousa querer, e diante dessa sociedade racista e desigual, isso é simplesmente inaceitável. No mundo organizado tal como Val conhece, sob as regras da elite paulista, o comportamento da filha é uma afronta e uma arrogância, uma deturpação da ordem estabelecida e das coisas como elas devem ser. Porém, para Jéssica, inaceitável é o comportamento da mãe: “Onde você aprendeu a ser assim?” – pergunta, a certa altura, a menina – “Essas coisas a gente não precisa aprender, não. A gente já nasce sabendo o que pode e o que não pode [fazer]” – responde a mãe, em uma das inúmeras cenas de embate entre as duas.

Anna Muylaert
Anna Muylaert, 51, diretora de Durval Discos (2002) e É Proibido Fumar (2009), faz seu melhor filme até agora com Que Horas Ela Volta?

Sensível para explorar sua protagonista em toda sua complexidade e captar o melhor de Regina Casé, em atuação magistral, a diretora aqui nos oferece um dos espetáculos mais honestos que o recente cinema brasileiro produziu. Que Horas Ela Volta? sobe à boca do estômago, fecha o palato, cora as bochechas, pesa na mente e aperta o peito. Faz a memória trabalhar, especialmente se você for branco e membro da classe média paulistana (como eu). Além disso, se tudo der certo, o filme também é capaz de trazer à lembrança episódios de abusos e desigualdades, sempre leves e perdoáveis (para quem não os sofreu), a qualquer um que já teve na vida a figura de uma empregada doméstica.

Embora talvez exagere nos alívios cômicos, que podem ser também problematizados por sempre se basearem no sotaque de Val, a história parece ter ciência do seu peso e profundidade e por isso constrói uma série de momentos leves e memoráveis, alguns dos quais impregnam na memória do espectador e têm tudo pra virar bordão de quem assiste, como “Meg, sinceramente” e “Ah, é descasado” (entendedores entenderão). A própria página do filme nas redes sociais explora essa faceta impagável da personagem, com postagens igualmente hilárias (veja aqui).

Tendo demorado cerca de vinte anos para compor o roteiro, Anna Muylaert reitera em cada entrevista que seu objetivo aqui foi demonstrar o gap social evidente de nossa sociedade, mas que ainda é invisibilizado. Em entrevista sobre o filme1, Regina Casé dá destaque ao aspecto afetivo das relações entre as personagens, pontuado de forma delicada e inteligente por toda a história: “O afeto vem pra melhorar algumas coisas e para piorar outras. Porque o afeto faz essa relação ficar meio nebulosa.” Partindo dessa fala, ao olharmos para a personagem de Val pelo plano dos afetos, considerando os tantos anos cuidando do filho dos patrões e distante de sua própria filha, vê-se que suas relações pessoais parecem truncadas e trocadas.  Assim, à medida que Fabinho dá e recebe seus carinhos, não consegue fazer o mesmo com a própria mãe, enquanto Jéssica, ao rever Val depois de uma década de distância, mal consegue chamá-la de mãe.

Dos olhos de Jéssica às expressões de Val, da aproximação sorrateira e cheia de segundas intenções dos homens da casa ao crescente descontentamento da patroa, as relações interpessoais passam do amigável ao desagradável à medida que papéis sociais deixam de ser cumpridos, relações hierárquicas são quebradas, expectativas são frustradas e afetos são transferidos. E tudo isso sem perder o foco de Val: aqui, a protagonista está na cozinha, limpa o banheiro, varre as escadas e dorme no quartinho.

O Cinema nacional já havia se dedicado antes a explorar narrativas de empregadas domésticas, da comédia pastelão (e de qualidade) Domésticas – o filme (2001), que basicamente lançou Fernando Meirelles, ao documentário Doméstica (2012), de Gabriel Mascaro. Contudo, nunca antes a representação fora tão bem construída, e contando com tamanha profundidade e delicadeza, como também nunca antes fora feita pelas mãos e lentes de uma mulher (aqui diretora, roteirista e produtora do filme). Acima disso, existe um marco temporal de impacto político e histórico no fato desse filme estar nas telas neste exato momento, pois o Brasil de hoje (apesar da crise) não é o de vinte anos atrás, e se a desigualdade ainda não foi mitigada, pelo menos houve algum chacoalhão social que intensificou a mistura de classes, não num regime de integração, mas de coexistência ainda mais turbulenta e intensificada.

Quando lemos no jornal ofensas aos nordestinos, como aquela cidade do Sul que queria proibir sua entrada e os dizia para que voltassem “pra sua terra”, quando alguém reclama que “aeroporto tá parecendo rodoviária” ou quando um bairro faz uma petição contra o metrô, dizendo que uma estação ali irá trazer um fluxo incômodo de “gente diferenciada”, tudo isso representa esse chacoalhão social e a intensificação dessas relações. Esses impactos se dão como um descarrilamento de trem, tirando-nos dos trilhos da ordem estabelecida, num processo cheio de turbulências e reações – e nunca, nunca fácil.

Assim, Que Horas Ela Volta? é um filme de nosso tempo que, como só os ótimos filmes conseguem ser (a exemplo de O Som ao Redor), curiosamente também diz muito sobre nosso passado, nossa história e nossa construção social.

Não à toa está causando furor por onde passa, agradando crítica e público, como o do Festival de Berlim, de onde saiu com o Prêmio de Melhor Filme pelo Júri Popular, e no Festival de Sundance, onde Regina Casé e Camila Márdila foram surpreendidas pelo prêmio duplo na categoria de Melhor Atriz. Nos cinemas do Brasil, tem lotado salas; nos EUA, segundo a página do filme, nesse último final de semana ganhou mais doze salas de exibição; na França, segundo a própria Regina Casé, está em mais de 180 salas e, por fim, no Rotten Tomatoes, site de avaliação de filmes, tem incríveis 98% de aprovação. À boca pequena, diz-se que ele desponta como um dos favoritos ao Oscar do ano que vem, mas diante do estouro de verdade e da profundidade da tese política, histórica e social construída aqui por Muylaert e vivida ricamente por todos esses atores que se jogaram de cabeça na proposta, os troféus devem ser definitivamente o que menos importa.

 

  1. Entrevista ao programa Amaury Junior, RedeTV!, de 14/08/2015.