São muitos os elementos que fazem de Clube de Compras Dallas um filme irregular. Contudo, dentre as peças que lhe dão valor dramático e fazem dele um filme que, se não excelente, decerto é respeitável, as mais importantes são Matthew McConaughey e Jared Leto.

Ron Woodroof (Matthew McConaughey) é eletricista, vaqueiro nas horas vagas e misógino e homofóbico em tempo integral. Surpreendido pelo diagnóstico de HIV positivo, diz ao médico: “Olhe para mim, eu tenho cara de quem come veado?” – revelando a ignorância dos anos 80 (cujos resquícios ainda existem), época da administração Reagan, em que essa nova e assustadora doença se espalhava incontrolavelmente pelo mundo.

Passado um momento inicial de negação, o caubói parte em busca de tratamento, mas descobre que o único disponível é o da AZT, em que teria que se submeter aos polêmicos testes cegos, com poucas garantias. Ele então parte para o México, ao encontro de um médico que trata com drogas ainda não aprovadas pelo rigoroso (e economicamente comprometido com as indústrias farmacêuticas) órgão regulador estadunidense, o FDA. Tratando a si mesmo, ele aproveita para contrabandear ao seu país as drogas ilegais, e com a improvável ajuda da travesti Rayon (Jared Leto), cria o Clube de Compras Dallas, revendendo a medicação a centenas de portadores da AIDS.

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Jared Leto mostra a barriga negativa para o papel de Rayon. Ele e Matthew emagreceram juntos algo em torno de 35 quilos.

Não é de todo raro no Cinema ver atores e atrizes apresentarem bons resultados em papeis improváveis para os estereótipos de suas carreiras. Penso em Nicolas Cage, vencedor do Oscar pelo papel do alcoólatra suicida de Despedida em Las Vegas (1995), que lhe extraiu uma dramaticidade que se achava impossível. Ou Charlize Theron, brutalizada em Monster (2003), que também lhe valeu um Oscar. Ainda assim, o plus de Clube de Compras Dallas é que essa surpresa é dupla: de um lado, Matthew Mcconaughey, o “Marcos Pasquim de Hollywood”1, que com seus muitos filmes ruins (muitos deles ao lado de Kate Hudson) construiu para si a imagem do machão-gente-boa-estadunidense, um cara mais bonito do que realmente ator. Do outro lado, Jared Leto, vocalista da popular banda 30 Seconds to Mars, que já tinha demonstrado habilidade em Réquiem Para um Sonho (2000) e Capítulo 27 (2007), como o assassino de John Lennon, se supera, revelando novas camadas no papel de Rayon.

Em Clube de Compras… ambos apresentam versões tão completamente novas de si que, de fato, até então eram inimagináveis. Assim, acima da qualidade do filme está o prazer de se surpreender com seus protagonistas. O Ron de Matthew ganha toda sua força na primeira metade, que é a melhor parte do filme, mas se mantém tocante e assustador com sua magreza doentia até mesmo nos momentos mais rasos da história. Já Rayon é o contraponto ideal, só não mais perfeito por culpa de falhas estruturais da trama, tendo a meiguice que apieda, mas também a força para fazer sua Rayon marcante.

A contrapartida, ainda entre as atuações, é Jennifer Gardner, que prova mais uma vez ser tão má atriz quanto seu marido, Ben Affleck. As interações de sua personagem, a doutora Eve, com Ron quase levam o trabalho de Matthew por água a baixo. Felizmente a aproximação dos dois é rasa, mas infelizmente a atriz não consegue, ainda, desenvolver-se em dramas, mostrando que o ponto alto de sua carreira no Cinema foi Elektra (2005) – ok, não sejamos tão maus, foi em De Repente 30 (2004).

A escolha de uma coadjuvante tão ruim revela algumas das comprometedoras falhas do diretor, Jean-Marc Vallée, do belo e bom A Jovem Rainha Vitória (2009). Se consegue demonstrar habilidade em construir um drama enxuto, compatível com a personalidade seca de seu protagonista, peca num final insosso, feio mesmo, que destrói a estética de um filme belamente fotografado por Yvés Belanger, com maquiagem também vencedora do Oscar de Andruitha Lee e Robin Mathews; se sabe construir transições habilidosas e passagens verdadeiramente memoráveis (como quando Ron reza, aparentemente numa igreja, que depois se revela um clube de strip), deixa uma barriga se formar na segunda metade da trama, desmontando qualquer possibilidade de ápice ou catarse do espectador. Parece, enfim, perder o interesse por sua própria obra, ansiando por seu final. Uma pena.

O verdadeiro Ron Woodroof: sua história demorou 20 anos e teve 137 recusas antes de ser filmada
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Na categoria de Melhor Ator do Oscar 2014, Matthew McConaughey sempre me pareceu favorito, disputando mais diretamente, talvez, com o “merecimento acumulado” de Leonardo DiCaprio. Já entre os coadjuvantes, não havia alguém à altura de Jared Leto, considerando que a Academia tende a premiar trabalhos envolvendo modificações físicas – talvez o único na disputa tenha sido Jonah Hill, em seu bom papel em O Lobo de Wall Street.

Mas Clube de Compras Dallas podia ser um filme muito melhor, muito maior, à altura da inacreditável e inspiradora história real em que se baseia e do esforço de seus atores, totalmente entregues à proposta. Se das escorregadas de Jean-Marc resulta um filme apenas bom, da superação de Matthew temos uma apresentação assombrosa, daquelas para guardar na memória e que provam que a boa interpretação tem algo de místico, que ascende quando menos se espera, naqueles momentos em que os astros se alinham e papéis que servem como uma luva caem nas mãos certas.

http://www.youtube.com/watch?v=xMobg4IyUtU

  1. Digo isso porque, assim como o ator brasileiro de O Quinto dos Infernos (2002) e Kubanacan (2003-2004), Matthew, no começo da carreira, parecia não saber atuar sem tirar a camisa, vide Sahara (2005) e Amor de Tesouro (2008)