A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contém em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério
– Uma Arte, Elizabeth Bishop

 

Já escrevi esses versos por aqui. Foi na dupla resenha e crítica do livro e do filme Flores Raras, escrito por Carmen L. de Oliveira (2011) e levado ao Cinema por Bruno Barreto (2013). Agora, publico-as por causa do filme Still Alice (no Brasil, Para Sempre Alice), de Richard Glatzer e Wash Westmoreland, indicado ao Oscar de Atriz pela soberba interpretação de Julianne Moore, já vencedora do Globo de Ouro deste ano na mesma categoria.

Adaptado do romance de Lisa Genova, o filme conta a história da bem-sucedida professora de linguística que começa a esquecer-se de palavras, compromissos e lugares. Preocupada, ela vai ao médico e recebe o diagnóstico de um tipo raro e hereditário de Alzheimer, que fará sua vida decair gradativamente rumo ao foço do esquecimento.

Alice é a típica WASP estadunidense que venceu na vida, tem um bom casamento com John (Alec Baldwin) e filhos lindos e saudáveis (entre eles, Kristen Stewart, da série Crepúsculo). Seu diagnóstico, portanto, ganha dimensões de um meteoro apocalíptico numa vida sem maiores turbulências. Felizmente, contudo, não se trata aqui de um filme chororô de despedida, mas de uma singela crônica de fim da vida, metaforizada pela borboleta amarela que Alice carrega em um colar: tal qual uma borboleta, Alice terá uma vida breve, mas linda e feliz.

Com cara de independente e pouca pretensão, o filme consegue ser muito menos brutal do que seu semelhante Longe Dela (2006, de Sarah Polley), estrelado pela também excepcional Julie Christie, que fez plateias do mundo todo desidratarem com a história da mulher que gradualmente esquece de seu marido por causa da mesma doença terrível.

Não que Still Alice não tenha momentos simplesmente arrasadores, pelo contrário: são ótimas e destruidoras as cenas que acompanham Alice nas atividades mais corriqueiras, como fazendo um chá ou tentando ir ao banheiro, cada vez mais degradada, confusa e despersonaliza. À certa altura, perdida à procura de um banheiro na casa de praia que foi sua desde sempre, Alice mija em suas próprias calças, diante do marido; em outro momento, depois de prestigiar uma apresentação de teatro da filha e ir aos bastidores cumprimentá-la, simplesmente não a reconhece.

Diante de um roteiro muito centrado na protagonista e de uma atriz que dá conta do recado sem maiores esforços, esse filme é todo de Julianne Moore. Os coadjuvantes não estão ruins, nem mesmo Kristen Stewart, que mesmo cheia de maneirismos de atuação consegue ter bons momentos ao lado da soberba Moore, porém esse é um filme de protagonista, cujo roteiro força sim um pouco a barra dramática justamente para destacar as habilidades de sua atriz principal. Em outras palavras, não é difícil pensar que trata-se de um “filme de Oscar”, daqueles que, assim como Clube de Compras Dallas no ano passado, ou Uma Mente Brilhante há tempos atrás, combinam elementos para agradar a Academia e outros festivais, como história de superação ou degradação, doença ou minorias.

Há tempos Julianne é uma de minhas atrizes prediletas. De fato, desde Ensaio Sobre a Cegueira (2008), adaptação do livro de José Saramago dirigida pelo brasileiro Fernando Meirelles. Mas posso dizer que foi com Virada de Jogo (2011) que ela me ganhou completamente, interpretando com maestria a candidata republicana a vice-presidência dos EUA, Sarah Palin, vencendo o Globo de Ouro pelo papel. Muito diferente da antipática Clarice Starling de Hannibal (2001), quando assumiu o papel eternizado por Jodie Foster em O Silêncio dos Inocentes (1991), Julianne soube se renovar e ainda que vez ou outra derrape em fracassos e vergonhas como O Vidente (2007) e Carrie, A Estranha (2013), sua carreira é tão prolífera e suas personagens tão distintas que nessa última década nos apresentou incontáveis trabalhos de muita qualidade, como em O Direito de Amar (2009), Minhas Mães e Meu Pai (2010), Amor à Toda Prova (2011) e Pelos Olhos de Maisie (2012), firmando-se, assim, como uma das mais interessantes e produtivas atrizes dos tempos atuais.

Se Still Alice é sua melhor atuação, há controvérsias. Eu ainda fico com sua Linda de Magnólia (1999) e Laura Brown, de As Horas (2002), mas ambas são personagens coadjuvantes, o que me faz pensar que talvez Alice seja sua melhor protagonista, altamente reconhecida pela crítica, o que lhe põe como favorita ao Oscar deste ano.

Still Alice concentra-se numa experiência pessoal de um medo que corrói a todos nós. O Alzheimer é, sem dúvidas, uma das doenças mais sofríveis e, assim, a protagonista aqui serve como um espelho delicado onde todos nós nos colocamos, em imaginação. À certa altura, lendo a peça de Tony Kushner Angels in America, ouvimos que “nesse mundo, há uma espécie de progresso doloroso”. Durante um discurso em uma associação de apoio a portadores de Alzheimer, Alice, tão acostumada a palestrar e dar aulas, tem dificuldade de engatar suas frases, mas se esforça para recitar os versos que Elizabeth Bishop destacados no início dessa postagem. No final desse mesmo discurso, a personagem arremata: “Eu não estou sofrendo. Não digam que eu estou sofrendo. Eu estou lutando”. Assim, essa bela história nos ensina que perder também faz parte da vida – e, como diria Bishop, “nada disso é sério”.