No princípio era o plano. Unidade básica eleita de uma nova arte em busca de diferenciar-se. Plano, bloco de sequências de imagens contínuas de duração temporal fixa. Encadeiam-se os planos de acordo com algumas regras simples para ludibriar nossos mecanismos de percepção e temos o que se convencionou chamar Cinema. Montagem: o cinema não é mais que uma sucessão lógica de blocos de movimento.

Parece simples dizê-lo assim, mas a verdade é que desde a consolidação de uma linguagem cinematográfica baseada na montagem, muito do que se produz em termos de imagem está permeado por forte parcela de descaso. Plano e contra-plano, somados a um plano geral, fornecem imagens suficientes para que se monte uma sequência capaz de se compreender como narração. Como uma receita de bolos que basta ser seguida para que qualquer história possa se contar, como bem já nos provou a televisão. No limite, basta que se filme inserts ((Termo que designa a justaposição, em uma mesma cena, de detalhes de objetos desta cena, partes do corpo de um dos atores ou reações de pessoas que não fazem parte da continuidade de movimento entre os planos que se conecta. Imagem que não compõe necessariamente uma necessidade narrativa, podendo ser utilizada como mero mecanismo de união entre dois planos.)) suficientes para preencher os erros de raccord ((Expressão utilizada para indicar o efeito de percepção de continuidade ou coerência entra dois planos subsequentes)).

A montagem, contudo, não suplanta o plano. Não basta que se omitam erros ou se cadencie a narrativa através do corte. O potencial dramático do cinema está sempre em suas características audiovisuais internas ao plano e todos os elementos – montagem, arte, fotografia, etc. – são apenas ferramentas para a construção de arcos dramáticos. E quem melhor nos ensina isso é Leon Hirszman.

São Bernardo é um filme de planos estáticos e poucos cortes, no qual cada posicionamento de câmera consolida uma imagem sintética de toda a duração da sequência. Entre cada unidade de tempo ou espaço não há cortes, exceto se estritamente necessários. Cada imagem é construída com o preciosismo de uma fotografia, que tudo narra em um único fotograma. Sua opção estética – quase oposta à inquietação das câmeras na mão do cinema novo – chega a chocar por seu potencial narrativo.

Adaptando a famosa obra de Graciliano Ramos, o filme conta a história de Paulo Honório, homem simples que se torna um poderoso fazendeiro, detentor da propriedade chamada São Bernardo, mas cujo sucesso material leva gradualmente à deformação do seu caráter. O fazendeiro, extremamente controlador e conservador, constrói seu inferno pela impossibilidade de assegurar seu domínio sobre a vida da esposa Madalena, professora que ele conquista com objetivo de garantir sua prole, mas que se torna objeto de obsessão de Paulo devido a sua personalidade forte.

Os planos do filme refletem com maestria todos os aspectos da narrativa. O uso de planos gerais e de conjunto em cenas dialogadas e as grandes elipses entre planos definem uma narrativa constituída à semelhança da memória, pontuando apenas os acontecimentos estritamente relevantes de forma contínua e fechada. De modo que cada corte se dá de forma extremamente controlada e precisa: corta-se para progredir a outro fragmento de memória ou para se dizer algo extremamente importante.

Um dos mais potentes exemplos deste recurso está na cena em que Paulo Honório, após grande insistência, finalmente consegue conquistar Madalena. Um plano de conjunto enquadra o casal discutindo os termos do casamento, ao qual Madalena é extremamente resistente. Após um ultimato de Paulo Honório se dá um corte para o close-up de seu rosto forte e decidido e, em seguida, um novo corte ao rosto titubeante – quase amedrontado – de Madalena. Nesta sucessão de planos é sintetizado com grande potência o domínio de Paulo Honório sobre aquela que, à partir daí, se torna sua esposa. O corte aqui apresenta sua potência máxima: uma imagem ganha uma infinidade de significados.

Os planos estáticos refletem a imutabilidade de São Bernardo. Dentro da propriedade, tudo se passa com dureza e determinação. É simbólico notar que há apenas dois planos em que a câmera se movimenta em todo o filme: o primeiro, quando Paulo conhece Madalena e acompanha a menina e sua tia para um pequeno hotel onde estão hospedadas – pois na vida de Madalena livre de São Bernardo, existe ainda a possibilidade da mudança e do movimento. O segundo se dá numa discussão política na mesa de jantar quando a câmera, que de início privilegia a ala defensora de ideais conservadores (padre, banqueiro e o próprio fazendeiro), move-se suavemente para o lado, reenquadrando o exato mesmo quadro anterior, mas de maneira simetricamente oposta, privilegiando agora a ala “comunista”, da qual Madalena faz parte. Pela primeira vez, em toda a narrativa do filme, o interesse de Paulo se voltou à sua esposa e compreendemos isso surpreendidos por este único movimento de mudança de ponto de vista. Leon sintetiza a transição mental de Paulo Honório que, incapaz de submeter a esposa às suas ideias, desenvolve um ciúme obsessivo. Basta, portanto, um tímido movimento de câmera para que toda a complexa psicologia desta cena se revele de maneira estrondosa.

Conta-se, dentre os causos que envolvem a produção, que a opção estética de Hirzsman para este filme decorreu em muito por uma questão de produção: sem dinheiro nem alternativa, contavam com uma quantidade limitada de rolos de película, o que obrigou a equipe a privilegiar planos-sequência sintéticos e evitar movimentos que pudessem comprometer os planos gravados. Acaso ou planejamento minucioso, o que de fato nos importa é o resultado estético e imagético impresso na película. Neste sentido, São Bernardo, por meio de seus planos bem arquitetados, configura-se em uma obra que sintetiza de maneira extremamente bem realizada a relação entre o plano e a montagem. Utilizando-se de uma linguagem enxuta e concisa, aponta na direção de um cinema comprometido com a concepção estética precisa e o potencial narrativo das imagens em si. Fundamenta um cinema ousado em que cada plano, cada quadro, compõem-se como se fossem a única imagem possível.