Bukowski nos ensina: o amor é um cão dos diabos. Amor errante, amor errado, amor perdido. São vários (ou todos?) os autores que já discorreram sobre o amor na Literatura, poucos com tanto brilho quanto Gabriel Garcia Márquez.

Prosa bem acabada, em tom de início jornalístico e que se perde, no bom sentido, no pendor de romancista. Em Do amor e outros demônios1 o autor discute as agruras da paixão, mas também, como só os grandes sabem fazer, temas muito maiores como a religião e a derrocada do colonialismo.Numa América Latina quase feudal, ainda em época escravagista e subjugada pela mão pesada da Santa Inquisição, Síerva María, filha de nobres degredados, menina de cabelos longos e pele pálida, é símbolo do sincretismo continental: “penduravam colares de candomblé por cima do escapulário do batismo” (p. 21). Mais confortável na senzala do que na casa grande, com os negros aprende a “dançar antes de falar” (p.66), cultuar outros santos e falar outras línguas: “Naquele mundo opressivo em que ninguém era livre, Síerva María o era: só ela e só ali” (p. 20).

Literatura sucinta e bela. Gabo constrói o panorama de um tempo, revê o passado do continente, pinta o século XVIII com as tintas da dor, do pecado, e é claro, também do amor.

 

O amor era um sentimento contra a natureza. (p. 217)

 

Cayetano Alcino del Espíritu Santo Delaura y Escudero, o Padre Cayetano, é incumbido por um bispo “condenado por sua má sorte” (p.79) a vigiar Síerva da raiva demoníaca que prospera em seu corpo após ser mordida por um cão raivoso. Agente de Deus, Delaura chega para travar mais uma batalha da “guerra milenar contra o demônio” (p. 102), mas é cegado pelo amor, e pelo Sol que, num dia de eclipse, marca seu olho com uma sombra permanente: cego de amor. Seria o amor uma artimanha do diabo? Estaria Bukowski correto?

Dos pais de Síerva, o marquês e Bernarda, têm-se o retrato da decadência colonial – e a presença da nostalgia, sempre ela, nas obras de Gabo. Culpados por seus próprios pecados, condenados em vida, vivem de angústias e solidão. Com a mãe, Síerva “tinha plena consciência de que não a amava nem era amada por ela” (p. 27). Mulher de difícil trato, cuja fortuna “vinda pela água, pela água foi embora” (p. 71), descontava rancores em orgias agressivas com os negros que desprezava e tentou ensinar Síerva a “ser branca de lei” (p.72). Já no marquês, nobre deixado “apodrecendo na rede a mil e trezentas léguas marítimas de um rei que nunca ouvira falar nele” (p. 73), ainda se veem espasmos de sentimentos, mas, atormentado, ele deixa de crer em Deus. Do amor e outros demônios não é um livro feliz, sua narrativa mantém sempre uma melancólica beleza, tal qual um casarão colonial vazio, adornado por uma camada de poeira que o vento incessante traz.

 

– Como estamos longe! – suspirou. De quê? [ – disse Delaura]. De nós mesmos – disse o bispo. (p. 142)

 

Metáfora da dominação católica (“a religião da morte”, p. 218) no continente, os negros dessa história, embora coadjuvantes borrados por protagonistas fortes, são símbolo de subjugo, material de crítica aos pecados cometidos em nome de Deus. Estão presentes aqui também, é claro, os elementos místicos que pululam nas obras do autor, seja a mordida/ação-demoníaca do cão, ou o cabelo de santa de Síerva, encontrado décadas depois, na presença do narrador dessa história.

Síerva, supostamente endemoniada após a mordida do cachorro, é enviada a um convento, onde sofre abusos e agressões das freiras. Seu sofrimento lembra o de Jesus: Síerva vive sua Paixão, tal como Cristo, ao mesmo tempo em que vive sua paixão por Delaura.

 

Tarde da noite, depois de um dia inteiro de disfarces, se sentiam amados desde sempre. (p. 190)

 

Por vós nasci, por vós tenho a vida, por vós hei de morrer e por vós morro” (p.132) – diz Delaura a Síerva, citando Garcilaso. Amam-se para sempre e desde sempre, mas apenas por curto tempo. O que impede esse amor é algo maior, muito pior, tenebroso como um genocídio.

Síerva, a menina que não conhece Deus (“ Sabe quem é Deus? – a menina negou com a cabeça”. p. 91), pelo menos não o Deus que deveria conhecer, o Deus permitido, o Deus institucionalizado. Talvez esse fosse sinal suficiente de sua possessão. É possuída, e quanto a isso não há dúvida, pelo amor: possessão capaz de matá-la, possessão incurável, possessão bem-vinda. Contudo, “a vida não lhes deu tempo” (p. 55). Quando o tempo passar, anos, décadas, séculos, e todos esses personagens já estiverem morrido, sobrará  apenas o amor. 2.

 

Quando paro a contemplar meu estado e ver os passos por onde me trouxeste… (p. 189)

 

  1. Poucos sabem, mas a obra foi adaptada para o Cinema, em 2009, por Hilda Hidalgo, e pode ser conferida na íntegra aqui.
  2. Dedicado a @juliaalvesc , que me ensina o amor