Sob o solo do Ocidente corre o sangue negro. Séculos de escravidão e subjugo de uma raça inteira, dominada por motivações econômicas e justificativas bíblicas, constituem dívidas históricas que são impagáveis, irretratáveis. Ao presente cabe o reexame constante para que tais barbáries não se repitam e, sobretudo, para que os resquícios dessa sombra ainda viva sejam encarados e, enfim, superados.

Em muitos aspectos, 12 Anos de Solidão, de Steve McQueen, é um filme muito necessário. Trata-se do primeiro filme dirigido por um negro com chances reais de levar a estatueta do Oscar de Melhor Direção – além do favoritismo na de Melhor Filme. Brutal e competente retrato, realçado por primorosa reconstituição histórica, a obra tem o valor de trazer sombras do passado à face da audiência, fazendo a barbárie roçar-nos o rosto e o sangue manchar a tela. Com isso, assume seu lugar na história do Cinema ao tratar desse assunto de forma bem menos condescendente que …E O Vento Levou (1941) e menos satírico que Django Livre (2012), para ficarmos em apenas dois exemplos do mesmo tema.

12 Anos de Escravidão é baseado no livro homônimo e autobiográfico do violoncelista Solomon Northup (no filme, Chiwetel Ejiofor), que em meados do século XIX foi sequestrado em Nova York, onde vivia com a mulher e dois filhos, por homens que lhe ofereciam emprego, e vendido a senhores de escravos do Sul estadunidense. Inicialmente Solomon tem a “sorte” de habitar a propriedade de um “dono benevolente” (Benedict Cumberbatch), porém, depois de intrigas internas, é vendido ao sedento e irascível Mr. Epps (Michael Fassbender). Assim, tem-se um retrato digno da brutalidade da escravidão estadunidense, justamente no momento em que se comemoram 150 anos da sua abolição.

Em entrevista1, o diretor Steven McQueen trouxe à tona a proeminência de releituras audiovisuais sobre o holocausto dos judeus na Segunda Guerra e a ainda pouco variada produção sobre a escravidão. Não se trata, evidentemente, de comparar as desgraças, ambas têm sua importância histórica, mas o fato, no mínimo curioso, talvez se explique pela influência judaica na indústria cinematográfica e a ainda desigualdade entre negros e brancos nos altos cargos.

Steve McQueen é um diretor que consegue fazer muito com pouco, e se faltou verba à produção e as filmagens tiveram que ser realizadas em corridos 35 dias, com apenas uma câmera, certamente não faltou inventividade fílmica. Desde metáforas como a dos escravos transportados como se numa lata de sardinha, até as belas cenas da paisagem, numa espécie de impressionismo abstrato (vale lembrar que Steve também é artista plástico), o diretor não só realiza uma obra, como pinta um retrato.

Além disso, sabe tirar o melhor de seus atores: assim como Hitchcock fazia com James Stewart, James L. Brooks com Jack Nicholson e, aparentemente, David O. Russell com Jennifer Lawrence, Steven McQueen traz o melhor de Michael Fassbender. Seu personagem, tão diferente do misterioso homem de Shame (2011), é o arquétipo da barbárie anglo-saxônica, o pior exemplar do homem branco combatendo o bom selvagem, que com a Bíblia na mão justifica sua maldade, mata e abusa.

A surpresa do elenco está na linda Lupita Nyong’o, nascida no México, indicada ao Oscar de Coadjuvante e vencedora do mesmo prêmio do Sindicato dos Atores. Seu drama é uma trama à parte, na qual caberia um filme só seu, mostrando que mais intenso que o subjugo do homem negro pelo homem branco, era o subjugo da mulher pelo homem, lembrando a máxima marxista de que “a exploração do homem pelo homem começou na exploração do homem sobre a mulher”.

Durante a sessão, contudo, perguntei-me diversas vezes como seria esse filme no Brasil. Sobretudo, por que ainda não se fez por aqui um filme assim, tão necessário quanto doloroso, no país que foi o último a abolir a escravidão e que mais importou negros da África? Ok, nossa indústria cinematográfica é incipiente. Ok, o tema é tão espinhoso que o fracasso comercial seria certeiro. Filmes mais leves, como Besouro (2009, de João Daniel Tikhomiroff), patinaram na bilheteria. Mas rememorar episódios assim, tão fundamentais à história do Novo Mundo, me parece tão necessário que não tê-las me cheira a tentativa de acobertamento – e talvez isso justifique um pouco da alienação de alguns que insistem em dizer que, no Brasil, o racismo já ficou no passado.

Os ecos da escravidão falam alto. Uma semana depois da declaração da jornalista defendendo os justiceiros que acorrentaram um menor infrator (preto e pobre), desconsiderando os movimentos sócio-históricos que influenciam os papeis sociais, é bom e necessário que salas de Cinema de todo o Brasil recebam 12 Anos de Escravidão.

 

https://www.youtube.com/watch?v=B2UNiMIxOm0

  1. Folha de São Paulo, 07/02/2014, de Silas Martí