Em agosto 1963, o ativista e pastor estadunidense Dr. Martin Luther King Jr. teve um sonho de um mundo de paz e com direitos iguais para todos, partilhado em um discurso épico, na escadaria do Lincoln Memorial, em Washington D.C. Em março de 1968, King foi assassinado a tiros em um hotel em Memphis, Tennessee.

Alguém disse um dia que a paz nunca teve uma real chance e que homens e mulheres que batalharam por ela com discursos, ativismo político ou artes, tiveram vidas sofridas e finais dolorosos. De Jesus à menina paquistanesa Malala Yousafzai, de Dalai Lama à irmã Dorothy Stang, de John Lennon a Chico Mendes, parece que a sorte nunca esteve realmente do lado dos engajados num mundo melhor.

Mas Selma, filme dirigido por Ava DuVernay, produzido por Oprah Winfrey e indicado ao Oscar de Melhor Filme e Canção (Glory, de John Legend e Common), não é a história do triste fim de Dr. King, mas um recorte pontual de um episódio de vitória ocorrido em 1965 na pequena cidade de Selma, Alabama, que à época ainda vivia sob a nostalgia do escravismo e negava a seus cidadãos afrodescendentes até mesmo o direito de votar.

Nesse período, Dr. King já tinha projeção internacional, tendo recebido o Nobel da Paz da Academia Norueguesa, e então decidiu que seu próximo “campo de batalha” seria na pequena mas engessada Selma, onde as autoridades se opunham publicamente aos direitos civis dos negros, criando barreiras burocráticas ao seu direito ao voto. Nesse contexto aconteceram os episódios das Marchas de Selma a Montgomery, organizadas pelo Selma Voting Rights Movement, que expôs para todo os EUA e para o mundo, via imprensa, a truculência policial e a ignorância pública.

Com um roteiro engenhoso escrito por Paul Webb, o filme acompanha Dr. King em suas diversas frentes de batalha, desde os protestos pacíficos e silenciosos pelas ruas da cidade em longas caminhadas, até conversas duras com o presidente dos EUA, Lyndon B. Johnson (Tom Wilkinson). Como pano de fundo, a instável vida familiar de King, de crise conjugal e ausência como pai. O detalhe mais inventivo, porém, é a adição dos relatórios de espionagem do FBI, à época liderada pelo temido J. Edgar Hoover (Dylan Baker), na forma de legendas que preenchem a tela em momentos chaves da narrativa. Assim, percebemos parte do jogo político sórdido contra o qual Martin teve de lutar para conquistar os direitos fundamentais daquele país que diz prezar tão profundamente a igualdade e as liberdades individuais.

Em interpretação irretocável, Daye Oyelowo dá vida ao icônico personagem. Sem antes ter feito outros papéis de muita relevância, o ator torna-se a grande injustiça do Oscar desse ano. Ainda sobre premiações, Selma não foi injustiçado apenas pela falta de Daye, mas suas parcas duas indicações parecem apontar para uma demagogia da Academia em indicá-lo, numa espécie de “sistema de cotas” para filmes com temática negra, sendo que a obra tem seus méritos próprios, merecendo reconhecimento bem maior. O próprio papel coadjuvante interpretado por Oprah Winfrey é de muito mais impacto do que o da insossa Keira Knightley em O Jogo da Imitação, esta sim indicada.

Um completo disparate, diante de um filme de extrema qualidade técnica, reconstituição histórica competente, uma trama redonda e excelentes interpretações (também destaco Carmen Ejogo, como Coretta S. King, esposa de Martin).

A indicação de Selma a Melhor Filme, diante do completo esquecimento em outras categorias, cria o que podemos chamar de Paradoxo Grande Hotel, o filme de 1932 com Greta Garbo que, absurdamente, ganhou o troféu de Melhor Filme daquele ano, sem nenhuma outra indicação. A lógica diz que elementos como fotografia, roteiro, produção, sonorização e etc. é que fazem de um filme o melhor do ano, ou pelo menos um dos melhores, o que cria o completo absurdo das pobríssimas duas indicações de Selma, culminando no esquecimento do ótimo trabalho de sua diretora, Ava DuVernay. Assim, parece que a Academia, em seu afã de agradar a gregos e troianos, acaba, como sempre, não agradando ninguém, cometendo absurdos, e por essas e outras tem visto sua audiência minguar e seu prestígio diminuir a cada ano.

Há de ter respeito pelo Cinema! E Selma é um filme de muito respeito. Não apenas pela história relevante que se propõe a contar, mas pela maneira eficiente e bonita como a conta, pelo engajamento evidente de sua equipe técnica e atores e pela função de manter vivo o legado de um personagem verdadeiramente memorável.