O verão de 1978 foi atípico para Ignacio Cañas, um jovem catalão da classe média, na cidade de Girona. De um adolescente com uma rotina normal, com amigos da escola e uma família tradicional, ele terminou o ano letivo sendo perseguido por um colega valentão, amedrontado pelos ataques e insultos de seus antigos amigos e travando discussões com o pai. Com 16 anos, a escola não era mais um lugar suportável, sair na rua não era mais divertido, pois a qualquer momento ele poderia topar com seu algoz, e sua casa se tornou um lugar insuportável de ficar. Até que um dia, em um dos fliperamas da cidade, conheceu Zarco e Tere. Jovens que nem ele, praticamente seus vizinhos, mas vindos de um outro lugar, separados de Cañas por um abismo enorme criado pela desigualdade.

Zarco e Tere eram quinquis, gíria catalã para “delinquentes juvenis”, moradores da parte mais pobre da cidade. Nesse dia, no fliperama, convidam Cañas para se juntar a eles em um bar no bairro chinês, conhecido na época por abrigar os traficantes, bandidos e prostitutas de Girona. Qualquer garoto teria declinado o convite e saído correndo amedrontado ao ser “recrutado” para sair com pessoas como Zarco e Tere, mas não Ignacio. Ele já não tinha muito a perder, e o interesse por Tere o convenceu a aparecer no bar depois de alguns dias. E aí a última peça da gangue juvenil mais famosa da Espanha se integra ao grupo, e a história de As leis da fronteira começa.

Javier Cercas faz uma espécie de romance de formação em As leis da fronteira. Dividido em três partes, o livro dá conta de diferentes momentos da vida de Antônio Gamallo, o Zarco, que se tornou na ficção a imagem da delinquência que assolou a Espanha no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. O livro é estruturado com gravações das entrevistas que um escritor contratado para contar a verdadeira e definitiva história do bandido realizou trinta anos depois daquele verão. Ignacio Cañas, antigo membro da gangue desmantelada ainda em 1978 e agora um respeitável advogado de Girona, é a sua principal fonte. Além dele, o escritor ainda ouve o primeiro policial a prender Zarco e o diretor da penitenciária da cidade, pessoas diretamente ligadas à sua vida carcerária.

Apesar do pretexto para as entrevistas ser a vida de Zarco, a ascensão e a queda de seu mito, grande parte da narrativa se concentra em Cañas e em seu envolvimento com o bandido e com Tere. Endeusado pela mídia, Zarco se transformou na figura mais famosa das prisões espanholas, tendo passado por todas as casas penitenciárias do país e fugido delas inúmeras vezes. Sua delinquência foi retratada em músicas, livros e filmes que lhe renderam fama e espaço nos jornais por muito tempo. O caráter midiático deste personagem o torna ainda mais complexo, pois apesar de ser um bandido trancafiado pela sociedade e julgado por ela, é constantemente paparicado pelos jornalistas e se aproveita da atração que exerce sobre eles. Toda a imagem criada em torno da vida de Gamallo o transforma em um personagem midiopata, carente de atenção.

A leitura, no início, lembra muito Detetives selvagens, de Roberto Bolaño, por ser feita através dos relatos de várias personagens e contar a vida de determinada pessoa por ângulos diferentes – logo essa impressão é desfeita, pois é Cañas quem fornece a maior parte dos relatos, e a vida de Zarco é abordada principalmente pela visão que ele teve de toda a sua história. Cercas não coloca na mesa logo de cara o que realmente aconteceu com Zarco e qual a dimensão de seus crimes, mas vai aos poucos desenrolando os acontecimentos conforme seus entrevistados respondem às perguntas do escritor.

Assim, começamos a leitura tendo contato com a adolescência de Zarco sabendo apenas que ele se tornou uma figura famosa na Espanha, mas sem ter conhecimento do que realmente o tornou famoso. O maior exemplo da influência que Zarco exerceu é justamente Ignácio, que, após escapar de ser preso por um roubo de banco frustrado que causou a primeira prisão de Zarco, passou a acompanhar incessantemente a sua vida pela mídia. Mas não só o bandido lhe interessa nessa história toda, mas também Tere, por quem nutriu durante aquele verão uma paixão nunca revelada.

Na segunda parte do romance, Javier Cercas concentra a narrativa na tentativa de recuperação da imagem de Zarco. Depois de passar por inúmeras penitenciárias e de fugir de tantas outras, cometer mais crimes e virar estrela de filmes, a mídia perde o interesse pelo seu personagem e, de volta à Girona, Gamallo quer ser um homem livre. Para isso, recruta a ajuda de Cañas, convencido a aceitar o seu caso principalmente pelo reaparecimento de Tere. É nessa hora que Cercas coloca no livro uma interessante discussão sobre a natureza da criminalidade de Zarco, explorada por Cañas na sua defesa. A questão é, seria Zarco um criminoso porque a sociedade lhe impôs a vida do crime – por nascer em uma classe pobre e sem oportunidades de levar uma vida digna –, ou seria assim por escolha própria? Cañas e as demais fontes do escritor oscilam entre culpar a sociedade ou responsabilizar apenas Zarco pelas suas atitudes, mas a verdade é que, entre o advogado e o criminoso, sempre houve uma fronteira separando-os, um abismo que divide as oportunidades de um e as de outro. A resposta disso pode estar justamente no final da primeira parte do livro, quando Zarco é preso e Cañas permanece livre, mesmo havendo muitas provas contra ele. O jovem Ignacio ainda teria uma chance de se recuperar através do auxílio da família e dos estudos, como realmente aconteceu. Zarco não possuía nada disso.

É essa diferença entre o lado afortunado e o lado oprimido pela pobreza a principal temática do livro. Apesar das tentativas de recuperação, Zarco sempre será a imagem da delinquência, que depois de passar a maior parte da vida trancafiado numa prisão não conhece outra forma de viver que não dentro dela. Em certo momento, o diretor da penitenciária de Girona afirma que ele é o homem mais “prizionalizado” da Espanha, pois passou mais da metade da vida encarcerado e sabe que todas as penitenciárias são iguais, mas diferentes em alguns aspectos. Cercas explora esse lado de Zarco e o seu medo de reintegração com a sociedade conforme as tentativas de Cañas de lhe proporcionar a liberdade são frustradas pelo seu próprio cliente. Ao mesmo tempo, parece que o advogado espera que Zarco não se recupere, pois ele é o seu “ídolo”, um resquício do passado em que foi acolhido pela gangue e quase foi um deles. Além de Zarco ser, de certa forma, uma ligação importante entre ele e Tere, que continua reaparecendo na sua vida.

A leitura de As leis da fronteira atrai o leitor pela relação de Cañas com Zarco, por explorar bem o vínculo que aproximou duas pessoas tão diferentes em determinado momento, deixando marcas permanentes na vida de cada um. Talvez no final da segunda parte o livro perca um pouco da atração que exerce sobre o leitor, da mesma forma que a imprensa vai deixando o interesse por Zarco de lado. Contudo, ao final, o livro deixa uma boa reflexão sobre as escolhas e as oportunidades que aproveitamos ou desperdiçamos, sobre até onde a desigualdade pode levar uma pessoa e fazer dela o retrato de um mundo criminalizado e irrecuperável.