A princípio, nem o projeto gráfico de As miniaturas parece fazer sentido. Por que o fundo preto? Faltou verba para fotografia? Truque minimalista? Tem que usar algum tipo de app novo? Luz negra? Para obter uma explicação, é preciso que o leitor – e o mesmo vale em relação à prosa de Andréa del Fuego – preencha os espaços com significado. Algumas dicas aparecem, mas não espere que todos os elementos lhe sejam entregues numa bandeja.

Então, pense sobre a capa.

A história do livro se desenrola entre dois planos, conectados pelo sonho. De um lado estão Maria Aparecida e o filho, Gilsinho. Ela é uma mulher de meia-idade que trabalha como taxista e prefere rodar pelas ruas em vez de ficar parada – primeiro, porque não é de ficar enfeitando ponto, e depois porque não tem sorte: na sua vez o cliente sempre pede pra levar até o metrô. Foi abandonada pelo marido, mas espalha entre os conhecidos que o dito-cujo está no hospital, em coma. De qualquer forma, não se lamenta muito, admite ser “chegada em homem” e tem um caso com o gerente do posto de gasolina.

Maria Aparecida sonha com objetos concretos e bem definidos, de preferência que possam indicar o animal certo para o jogo do bicho. Também cobiça informações oníricas sobre os números da loteria. Não hesita diante de qualquer trambique que faça entrar mais dinheiro em casa, mas respeita seus clientes. Tenta, por exemplo, entrar em contato quando alguém esquece os documentos no carro. Uma personagem, enfim, que não desperta simpatia, por seu jeito às vezes truculento, às vezes cínico, mas que convence pela espontaneidade, um jeito de pessoa comum como pouco se vê na literatura.

Gilsinho, por sua vez, nos seus dezesseis anos, mostra-se inseguro até quando sonha. Ao contrário da mãe, que sabe como responder a qualquer situação, ele parece sempre desnorteado. Cursa um técnico de publicidade, mas, sob pressão materna, aceita o trabalho de frentista para ajudar nas contas do mês (incluindo aí o abastecimento “com desconto” para o táxi). Mais para frente na história, já pende para a carreira de fotógrafo.

Com um certo ar de quem ficou preso na roda de bobinho, ele parece um personagem incompleto, mas suas supostas falhas são apenas as falhas de um adolescente comum: a incerteza, a dificuldade de reagir em situações que não tenham sido reprisadas muitas vezes. As opiniões de Gilsinho parecem mais respostas aos demais personagens, e ele vai criando consciência à medida que denuncia os abusos da mãe.

Metade dos capítulos, portanto, é dedicada a mãe e filho, e se passa na casa que dividem, no táxi de Maria Aparecida ou em outros cenários cotidianos. A outra metade se concentra em um único edifício, de localização concreta – no centro de São Paulo –, mas de natureza fabulosa. No Edifício Midoro Filho vivem e trabalham os oneiros, funcionários de uma organização com estrutura, hierarquia e plano de carreira, sempre a serviço da saúde onírica dos demais.

Não fica claro, no entanto, se os oneiros atendem a todas as pessoas ou apenas tratam de casos especiais, daqueles que precisam de ajuda para sonhar. De qualquer maneira, há um procedimento padrão: o sonhante entra na sala, senta-se numa cadeira, de olhos fechados; o oneiro diz algumas palavras, apresenta suas miniaturas. Estas são símbolos simples – pomba, elefante, bicicleta –, aplicados em variedade condizente com a faixa etária do sonhante: poucas para crianças e velhos, incontáveis para os adultos maduros.

A mola propulsora da história se distende quando mãe e filho se tornam sonhantes fixos de um mesmo oneiro. Essa transgressão inicial das regras do Edifício – o manual do oneiro não permite o parentesco entre pacientes – desperta uma obsessão, leve a princípio, mas que se expande progressivamente, até que o oneiro não consegue se concentrar em nada além destes dois sonhantes. O que o leva a agir dessa forma, contudo, é uma das coisas mais enigmáticas do livro.

O mais interessante da dinâmica entre oneiro e sonhantes é que toda a comunicação entre eles se dá por meio das miniaturas. As imagens que o oneiro apresenta durante as sessões no Edifício Midoro se transformam em sugestões, mais fortes para a mãe, mais fracas para o filho, das quais eles se tornam conscientes quando despertam. O oneiro, por sua vez, não vê como suas sugestões transcorreram, nada sabe além das expressões e das preocupações com que seus pacientes retornam no dia seguinte.

Não existem palavras desperdiçadas no livro. Por isso as explicações precisam ser extraídas, ou construídas, a partir da narrativa. Mesmo as descrições dos personagens são indiretas. Descobre-se a calvície do oneiro apenas porque ele diz: “Penteio os cabelos nas laterais, onde há cabelo”. Tudo parece incompreensível a princípio, mas pouco a pouco emerge um sentido para os fatos, que será, contudo, menos definitivo que o usual.

Em comparação com um livro comum, que está finalizado e pode ser colocado de lado após a última página, As miniaturas parece ao mesmo tempo incompleto e mais rico. O final não traz uma mensagem esclarecedora que liga todos os fatos de maneira simples (“Gilsinho, eu sou seu pai”), mas desse modo se preserva o mistério. Assim, é possível abrir de novo a primeira página para continuar tentando decifrar a bela obra de Andréa del Fuego.