“Observa: ésa parece ser su única tarea. Observar. En las diez pantallas. Leer. Es un lector. Un analista. En diez pantallas simultáneas. Un descifrador de imágenes y de datos. La información circula ante sus pupilas y él la sigue, la persigue, la examina, en diez pantallas simultáneas. La disecciona. Teclea, de vez en quando.”
– Jorge Carrión, Los muertos

Muito se fala dos impactos que os meios de comunicação causaram na literatura, pelo menos nos últimos 50 anos. Já é uma constante no discurso crítico que até mesmo os escritores que não têm por objetivo refletir sobre a questão das mídias em seu trabalho acabam agregando influências e dinâmicas próprias desse ambiente, à revelia de sua vontade. É o mundo em que estamos imersos; e principalmente aqueles que estão trabalhando com a expressão, como os escritores, não têm a possibilidade de estar alienados a esse processo.

Entretanto, há que se pensar que justamente pela literatura não ser uma atividade isolada na sociedade e sofrer essa influência diretamente, ela também acaba por afetar ativamente na construção de uma paisagem midiática mais expandida, dialogando e problematizando a nossa cultura caracterizada pela presença extensiva dos meios de comunicação. Especialmente nesse momento, quando já se podem entrever mudanças significativas naquilo que entendemos por “cultura midiática” para um estágio ainda mais complexo e com dinâmicas próprias, que vêm sendo tratado como uma “cultura METAmidiática”.

A ideia de metamídia decorre do teórico canadense Marshall McLuhan, que afirmava que os diferentes meios de comunicação estavam em constante relação de contato e apropriação uns com os outros. O rádio surge como uma metamídia do jornal impresso, alcançando aos poucos a sua autonomia. O mesmo ocorre com a TV sendo uma metamídia do rádio, e assim por diante.

Porém, se para McLuhan a metamídia era um processo no qual haveria sempre uma apropriação e ressignificação de meios mais antigos pelos mais recentes, o surgimento da Internet nos faz refletir sobre a existência material de uma metamídia, uma mídia que conjugaria constantemente todas as anteriores. A Internet não possibilita apenas, enquanto metamídia, a coexistência de produções e linguagens próprias de todos outros meios, mas também propicia uma atitude de comentário e produção interativa e individual, o que agrega ainda mais o seu caráter de meta. Não seria o Facebook, por exemplo, um grande repositório de produtos midiáticos e seu constante escrutínio, reelaboração e comentário? A Internet parece ser, portanto, a metamídia por excelência, tendo o “espectador” como seu mecanismo de produção e até mesmo de conteúdo.

Esse aspecto metamidiático da Internet, entretanto, não é uma invenção da própria tecnologia. Existem dinâmicas sociais e de consciência que preexistem uma tecnologia e que a ela dão forma, não o contrário. Por isso é possível entrever uma espécie de sensibilidade metamidiática muito anterior ao surgimento da Internet, que apenas deu uma forma material a algo que era difuso.

Existem duas “correntes” literárias que parecem apontar para o estabelecimento de uma cultura metamidiática que está tomando forma. Um deles, pré-internet tal como a conhecemos hoje, chamado Avant Pop, surgido no início dos anos 90 nos EUA, que já prevê, de certo, uma sensibilidade que se desenvolve em conjunto com a questão midiática. O outro, mais recente, chamado Afterpop, está em plena atividade na Espanha hoje em dia e já lida com a questão das mídias no contexto da Internet.

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Para entender o que foi o Avant Pop e suas principais características, não é preciso um esforço desumano. Lê-se o manifesto que as ideias propostas nos surgem como algo plenamente reconhecível e familiar. Situacionismo, intervenção, William Burroughs, cultura Pop. Dois aspectos centrais são problematizados no manifesto: um de ordem mais sociológica, que diz respeito ao modo como a paisagem midiática está estabelecida e de que forma nos relacionamos a ela; e outro estético, sobre como podemos responder artisticamente a essa paisagem.

Há de notar-se duas questões importantes do contexto em que o movimento toma forma. A primeira é, sem dúvidas, o grande protagonismo das mídias tradicionais, especialmente a televisão, adquirido ao longo da década de 80 na cultura norte-americana, dominando industrialmente a grande maioria das formas de expressão numa ideia fechada e mercadologicamente padronizada de Cultura Pop. A outra, em paralelo, é o desenvolvimento também ao longo dos anos 80 de uma cultura alternativa, underground, que com seus próprios meios de difusão cultural (fanzines, fitas cassete, home video) faziam uma espécie de resistência ao Império das grandes corporações midiáticas, criando uma cultura Pop diferente, mais livre e artesanal.

Dado esse contexto, ficam claros os princípios estéticos propostos por essa atitude Avant Pop: a ideia de um parasitismo entre a cultura midiática estabelecida e uma sensibilidade Avant, marcada por um experimentalismo proposto dentro das formas próprias da cultura pop. A ideia seria tomar aquilo que é próprio das mídias e da cultura pop tradicional  sua linguagem, seus personagens, sua dinâmica de produção  e dar um tratamento estético subversivo através de técnicas literárias experimentais, de forma que o resultado final ainda fizesse parte de um contínuo midiático, ainda parte do pop, ainda que Avant.

A dinâmica entre a existência de uma cultura midiática que não pode ser ignorada aliada à necessidade de operar nela um tratamento estético subversivo é a base do que pode ser chamada uma ATITUDE Avant Pop. Essa atitude, de uma intervenção sobre a questão das mídias por outros meios, a literatura, já aponta para a existência de uma sensibilidade metamidiática.

Um exemplo de como a estética Avant Pop se realizou literariamente é o livro de contos do escritor norte-americano David Foster Wallace, Girl With Curious Hair. Cabe lembrar que o próprio escritor escreveu um ensaio sobre a relação inevitável entre literatura e televisão com que os jovens autores americanos teriam de lidar e enfrentar de alguma forma.

No conto “My appearance”, uma atriz de seriado televisivo, estilo Law and Order, é convidada para participar do talk-show de David Letterman. Sabendo das tendências do apresentador para ridicularizar ironicamente seus convidados, o marido da atriz propõe que ela use um ponto eletrônico pelo qual ele daria as direções de como combater a ironia de Letterman com outra ainda mais ácida e potente. A atriz decide ignorar o ponto e desenvolve uma performance de pura honestidade, o que desmonta não apenas o apresentador  que mostra involuntariamente sua face humana e falível  mas também toda a plateia. O show entra em suspensão e a televisão não sabe como agir perante a “humanidade” da atriz.

A ideia de Foster Wallace, também desenvolvida de maneira semelhante em outros contos do livro (e também em grande parte de sua obra, com outras matizes que a essa reflexão não interessa desenvolver), como “Little Expressionless Animals”, é que aquilo que é da ordem do “humano” (escolha, sentimento, arte, etc.) sempre irá se sobrepôr ao tecnológico. A atitude de Letterman é a própria mediação televisiva e a da atriz é análoga ao do ficcionista Avant Pop  levar, custe o que custar, o humano para a tecnologia (em Infinite Jest o autor bagunça isso tudo, mas deixemos essa análise para outro momento, ref. VERÃO INFINITO)

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Em 2007, o crítico espanhol Eloy Fernández Porta lança o livro Afterpop – Le literatura de la era de la implosión mediática, uma espécie de misto entre crítica literária e sociologia das mídias com ares de manifesto. Pertencente a uma geração de jovens escritores espanhóis, Porta identifica o que chama de uma “condição estética” na qual estamos imersos, em que a influência dos meios de comunicação e sua cultura já não são mais discerníveis de ordens “superiores” de expressão artística  o ambiente Afterpop.

Aquilo que Porta chama de “implosão midiática” tem a ver com a sedimentação do que estamos tratando por cultura metamidiática. A ideia de uma verticalidade midiática, em que os meios de comunicação eram distantes e inatingíveis, vai aos poucos arrefecendo a partir de uma produção cada vez mais localizada, especializada e individualizada. Culturalmente, se implode a ideia de grandes centros de cultura ou de grandes tendências ditadas pelos meios e se cria uma rede complexa de diversas influências e produções que têm origem nas mais diversas formas. Os produtos midiáticos, evidentemente, ainda operam do “centro”, mas não mais como Impérios Expressivos mas sim como mais uma das infinitas expressões de linguagem contemporânea.

O tom de denúncia típico do Avant Pop, que sempre prevê uma intervenção artística como necessária para “salvar” o ambiente midiático, perde um pouco de força no ambiente Afterpop. Talvez porque a intervenção tenha ocorrido, ou porque a atitude Avant Pop já faz parte da sensibilidade geral. Pois, se no Avant Pop sempre se buscava um “fora” das mídias para fazer emergir o choque e a redenção, no Afterpop esse “fora” é descartado. É a partir das dinâmicas próprias dos meios e de suas expressões materiais que se busca potencializar e expandir os limites da criação com a linguagem. Seria como em vez de fazer uma ficção sobre a televisão, tentar elaborar uma forma televisiva dentro da literatura. Assim, o meta deixa de ser um comentário para tornar-se uma apropriação mais direta das diversas linguagens que compõem a paisagem midiática contemporânea, de forma a enriquecê-la.

Essa forma de conceber uma cultura metamidiática está expressa em um romance exemplar da “condição estética” Afterpop: Los muertos, de Jorge Carrión.

Los muertos segue uma linha de “literatura de ideia”, em que a mera exposição de sua estrutura já provoca uma reflexão acerca do experimento estético do autor. No livro, “Los Muertos” é uma série de TV com duas temporadas de oito episódios transmitida pela Fox. O romance é dividido em quatro partes. A primeira e a terceira correspondem às duas temporadas da série, divididas em oito capítulos cada, espelhando os episódios. A segunda parte do romance é um ensaio escrito por Marta H. de Santis no intervalo entre as temporadas, que investiga os temas da primeira temporada e a vincula a certos temas sociológicos. A quarta parte é um artigo acadêmico assinado por Jordi Battlló e Javier Pérez que analisa a série no cenário mais amplo da TV e também numa linhagem estética própria do século XX.

Todo esse universo é desenvolvido por Jorge Carrión em pouco mais de 150 páginas, o que o filia na linhagem de uma sucintez borgeana descarada. Também é borgeano o tema da narrativa, a história da série “Los Muertos”: aos poucos começam a se materializar em Manhattan pessoas que carregam estranhas cicatrizes. Surgem do nada, sem memória, e devem se integrar à sociedade. Para isso, as autoridades os encaminham para adivinhos que conseguem descobrir flashes de suas vidas passadas. A grande sacada ocorre quando nos damos conta que essas pessoas são personagens de outras ficções mortos em seus mundos de origem e que renascem nesse outro. Daí temos os Replicantes de Blade Runner, a menina de vestido vermelho de A Lista de Schindler, quase todo o elenco de Sopranos e O Poderoso Chefão e, é claro, Lady Macbeth.

A série poderia ser interpretada a partir de diversos temas: a busca por identidade, a persistência (ou invenção) da memória, a capacidade de se reinventar e a criação de comunidades. Também haveria uma dimensão ética: qual a responsabilidade dos autores sobre a morte de seus personagens? Entretanto, apesar de tais temas estarem aí para serem escrutinados à vontade, o epílogo do livro nos traz um aviso: em entrevista a Larry King, seus autores bradam o bordão “Contra a interpretação!”. O que interessa, parece, não são os temas abordados, mas sim toda a construção de um objeto ficcional complexo e a sua própria recepção no ambiente midiático contemporâneo. Como uma série de TV consegue movimentar todo um universo autônomo de textos secundários, teorias e interpretações, que, no limite, também dialogam com os temas da própria série (comunidades, identidade, memória).

Jorge Carrión também escreveu um livro de ensaios sobre séries de TV intitulado Teleshakespeare, em que lança a ideia de Ficção Quântica: um processo de escrita e leitura que ocorre em diversos níveis de linguagem e de referência, que fazem a obra ser instável quanto a sua produção ou recepção, dependendo de quanto se mergulha nesse meta-universo. O objeto ficcional vai agregando camadas e nunca se dá por finalizado, é uma obra em constante construção. Evidente que esse processo não é nenhuma novidade, o próprio Borges e Joyce (atentem para o título do último conto de Dublinenses) estão aí jogando as bases para esse tipo de processo há bastante tempo. A questão que Carrión aponta é que essa atitude perante a ficção, antes parte de obras com altíssimo grau de experimentalismo, se disseminou de maneira exponencial hoje em dia, devido ao processo midiático ao qual estamos inseridos. Matrix, Lost e seus milhares de acessórios textuais estão aí para mostrar que as mídias tornaram-se a nossa Biblioteca de Babel.

E é justamente esse tipo de experiência que Carrión traz no romance, se o pensarmos “Contra a interpretação!”. Não apenas pela inclusão (um tanto quanto irônica) dos ensaios interpretativos, que dizem pouco sobre a obra nesse nível, mas também pela própria construção da prosa: cada parágrafo tem um ponto de vista diferente costurado por elipses, diálogos enigmáticos com toques de filosofia obscura, um mistério de fundo mezzo sobrenatural, uma teia de referências intertextuais passíveis de reconhecimento a um Google de distância. É um convite a uma imersão ficcional, onde as partes constitutivas da narrativa não são “suficientes” para um leitor ávido. E é justamente tal imersão que ativa um gatilho dos mecanismos metamidiáticos, que compõem uma paisagem tecnológica de busca, produção e disseminação de informação numa teia que existe a nossa revelia. Cabe ao escritor vê-la ou ignorá-la. Mas que existe, existe.