É incomum que se questione a cobertura do tapete vermelho das grandes premiações. As mulheres que passam por ele sabem que serão escrutinizadas e que não há como ter certeza a respeito da reação dos críticos fashionistas (e, pior, das pessoas em casa) ao que escolheram vestir – com o devido auxílio de diversos profissionais especializados, claro.
A velocidade com qual se propagam piadinhas e comparações, tuitadas enquanto ainda estão sendo processadas pelo cérebro a fim de que todos as curtam e compartilhem o mais rápido possível (“viram como Meryl Streep estava parecendo um ovo de Ferrero Rocher?”), inspirou uma esquete de Jimmy Kimmel durante o Oscar deste ano para perguntar aos telespectadores: “Qual é o problema de vocês?”.
Jimmy é um cara engraçado e foi interessante pensar nos puxões de orelha que as pessoas deveriam estar recebendo em suas casas. No entanto, um puxão de orelha daqueles bons mesmo foi o dado por Cate Blanchett na própria imprensa, tudo resumido em um gif: “Vocês também fazem isso com os caras?”
A resposta simples é: não. No máximo conferem o comprimento das mangas, o caimento nos ombros, a bainha – os que fogem ao padrão integram a lista de mal-vestidos. Uma tirinha exemplifica bem a questão.
A tirinha se presta a dois argumentos. O mais comum é o questionamento feminino da necessidade de que sempre apresentem roupas (e maquiagem e acessórios) diferentes para cada ocasião – o famoso “é tão mais fácil ser homem”. Ainda que muitas mulheres gostem disso, tanta variedade deve dar um trabalho imenso. Conheço um bom número delas que não agem assim porque gostam, mas porque, se não o fizerem, terão de arcar com as consequências – uma delas, a de ser considerada “desleixada”. Como se uma mulher devesse se resumir à sua aparência.
O outro argumento se dá do lado dos caras: a pouca variedade de opções no guarda-roupa também cansa.
Não é todo mundo que pensa assim: em uma coluna de Alexandre Vidal Porto – cujo romance mais recente, Sergio Y. vai à America, talvez interesse a quem curtir o tema desta coluna (sem spoilers!) – vi o terno ser chamado de “uma conquista masculina do conforto”. Contudo, o próprio texto deixa claro que o traje possui detratores pela falta de familiaridade com ele.
Por falar em falta de familiaridade, sabe uma coisa que parece confortável pra caramba? Saia. Parafraseando Freud, às vezes uma saia é apenas uma saia. É só chegar e usar. Contudo, parece que até ela ser apenas mais uma peça do guarda-roupa masculino, há todo um processo – ainda mais quando alguns preconceitos fazem parte da linguagem coloquial (e machista):
Archie usara de evasivas e argumentara, temendo a ira de Clara, mas Samad o tranquilizara: “Siga o meu exemplo, Archibald. Quem veste as calças na minha casa?” Archie pensou em Alsana, que com frequência vestia aquelas encantadoras calças de seda com o tornozelo afunilado, e em Samad, que regularmente trajava uma longa peça de algodão cinza bordado, amarrada em torno da cintura, para todos os efeitos uma saia. Mas guardou o pensamento para si. (“Dentes brancos”, de Zadie Smith, Companhia das Letras)
Nunca tinha pensado muito na questão até Laerte Coutinho lançar Muchacha em Curitiba, há quase quatro anos. E, deste então, tenho visto toda espécie de notas relativas ao assunto na imprensa e na internet1. Desde o rapaz que, proibido de usar bermuda no calor, pediu à esposa uma alternativa até aquele se recusou a dar ao chefe o gostinho de definir o que seria “roupa de homem”. Desde o pai que adotou a vestimenta para não constranger o filho até os franceses que a escolheram como forma de protestar contra o sexismo. Desde o artista que decidiu sondar a reação das pessoas ao traje do futuro até o cara que experimentou ser drag queen por um dia.
Enquanto por aqui surgem páginas incentivando essa libertação, soube de países em que não há nada mais comum do que ver um marmanjo usando, por exemplo, roupas de colegial (saia plissada) e ninguém dando a mínima. E não foi apenas um amigo que me contou, enquanto comentava sobre o tempo em que viveu no Japão; também li isso em Kitchen, livro de Banana Yoshimoto (Nova Fronteira) composto por um romance (homônimo) e uma novela (intitulada “Moonlight Shadow“). Há coisas que nos marcam mais quando a conhecemos por meio da ficção, creio.
No romance, acompanhamos Mikage uma órfã que perde seu último parente (a avó, com quem vivia), sendo assim acolhida pela mãe de um amigo. Depois, descobrimos que esta mãe originalmente era o pai do amigo que, após a morte da esposa, decidiu que não teria outra esposa e que não só passaria a usar as roupas da mulher como se tornaria uma. Na novela que sucede o romance, algo semelhante ocorre: um acidente de carro mata tanto o namorado da protagonista, chamada Satsuki, quanto a namorada do irmão deste, chamado Hiiragi. Enquanto Satsuki contempla a possibilidade de suicídio, Hiiragi lida com o luto e com a saudade da namorada vestindo diariamente o uniforme escolar da falecida.
E não há nisso nada de estranho. Se há quem anseie por ver o personagem deixar de usar aquelas roupas é para vê-lo superar a dor dos enlutados.
Da última vez que estive em São Paulo, me senti compelido a visitar a famosa exposição sobre David Bowie no MIS – ainda que o artista não fizesse parte das minhas referências, prometi atender à recomendação dos amigos que a tinham visto antes.
Não pude deixar de agradecê-los depois: eu não fazia ideia de tudo aquilo. O homem era (alias, é) um artista completo, desde a composição das músicas até a concepção do personagem que protagonizava os seus discos. Era improvável que saísse sem me deslumbrar com os figurinos originais expostos em manequins.
Devo ter ficado na frente da telinha que exibia o vídeo a seguir por tempo suficiente para vê-lo um bom número de vezes. Tentei prestar o máximo de atenção nas implicações irônicas da letra e do visual do clipe (que satirizam o machismo e brincam a respeito da variedade de roupas comuns no guarda-roupa masculino), pensando em como, mesmo alguém conhecido por se distinguir do senso comum, estava sujeito à pressão de forças maiores e a ser censurado2.
Tão logo saí daquela imersão, decidi que queria conhecê-lo mais. Para quem pretende não apenas conhecê-lo, mas também ter contato com outros artistas com os quais ele conviveu, deixo a dica do Dangerous Glitter: como David Bowie, Lou Reed e Iggy Pop foram ao inferno e salvaram o rock´n´roll (Veneta) – um catatau escrito por um apaixonado por uma banda, em que há doses iguais de Bowie, Reed e Pop, com pitadas de personalidades interessantíssimas, tais como Nico e Andy Warhol. Muito informativo.
Se com David, os figurinos adotados ligavam-se à sua persona artística, não pude deixar de ver a semelhança com a performance “Retrato de uma senhora, 1988”, em que o polêmico casal Caleb e Camille Caninus planejaram criar uma comoção num concurso de beleza para meninas. Para isso, convenceram o filho relutante, Buster, a ser disfarçado e a concorrer com as demais garotas – Annie, a filha, não serviria, pois, se vencesse, não diria “nada sobre a questão dos gêneros e a objetificação e as influências masculinas no ideal de beleza”. Só não esperavam que o filho chegasse realmente à final da competição.
Nenhum dos Caninus podia negar: Buster estava deslumbrante. Quando ele veio até a dianteira do palco com o seu vestido de festa ridiculamente lantejoulado e com os com os compridos cachos louros balançando no ritmo de suas passadas confiantes, os demais membros da família Caninus começaram a se dar conta de que ele tinha uma possibilidade real de vencer. Enquanto Caleb continuava a filmar tudo com sua câmera, Camille agarrou a mão de Annie e cochichou: “Ele vai ganhar, filha. Seu irmão vai ser a miss Trevinho-Encarnado do ano”. Annie olhou para Buster, cujo rosto parecia paralisado de felicidade, e no mesmo instante compreendeu que, para seu irmão, aquilo não tinha mais nada a ver com a ideia de fazer um manifesto artístico. Ele queria aquela coroa. (“Caninos em família”, de Kevin Wilson, Companhia das Letras)
Para além do luto e da manifestação artística, encontrei justo num livro infantil um personagem que quer usar vestido apenas porque parece mais legal do que as roupas normais.
Da mesma forma que Justin, personagem do seriado Ugly Betty, adorava a revista Mode, Dennis (o protagonista de O menino de vestido, de David Walliams, Intrínseca) é fascinado pela Vogue – tanto quanto gosta de marcar gols pelo time do colégio. Sua vida meio triste (o abandono pela mãe, a depressão do pai, as brigas com o irmão, a regra familiar de proibição dos abraços) muda quando ele se torna amigo de Lisa, a guria mais bonita do colégio (por quem ele e o irmão têm uma paixonite), durante um castigo escolar. O interesse de ambos pela famosa revista de moda cria uma intimidade que leva posteriormente à oportunidade de Dennis se passar por Denise, uma estudante francesa de intercâmbio.
Sim, rolam altas confusões. Aliando algo do estilo politicamente incorreto de Road Dahl (as ilustrações de Quentin Blake ajudam na impressão) e algo do humor de Lemony Snicket (nada condescendente com as crianças), David Walliams cria uma sequência deliciosa de passagens memoráveis, ridicularizando certos preconceitos (ainda que não iluda o leitor, mostrando a gravidade e a capacidade de causar dor destes) e brincando com o que o senso comum nos faz esperar.
Um exemplo? Depois de admitir para a mãe de seu melhor amigo, Darvesh, que foi à escola usando um vestido laranja de paetês, Dennis ouve o seguinte dessa senhora, horrorizada: “Ai, Dennis, que horror! Puxa vida, laranja não é mesmo sua cor. Com seu cabelo claro, você provavelmente ficaria bem melhor com um tom pastel, como cor-de-rosa ou azul-bebê.”
Fica, portanto, a dica da senhora-mãe-do-Darvesh: fique menos preocupado com o que está vestindo e mais atento a outros detalhes – como se a cor escolhida valoriza o seu tom de pele. Uma baita dica.
- E, sobretudo, creio que o Laerte tenha influenciado na criação do conto que publiquei no Livro dos novos (Travessa dos Editores). ↩
- Para saber um pouco mais a respeito, segue o link. ↩