Dia 6: Dilemas, dragões e docuficção.

Depois da experiência de ontem, foi bom inaugurar o dia hoje com um filme de gênero em que as coisas acontecem em um esquema de causa e consequência facilmente digerível. Confesso que parte da motivação que me levou a incluir Detetive D: O Dragão do Mar (Tsui Hark, 2013) na minha programação foi a ideia de escrever as palavras “Detetive D: O Dragão do Mar” no Posfácio, mas o fato é que esse filme é bem melhor que a maioria dos blockbusters americanos.

Hark é um veterano do gênero wuxia e um dos responsáveis por tornar Jet Li um ícone. Aqui ele mistura ação, aventura, mistério e filmes de monstro de forma colorida e estilizada, sem a menor vergonha de jogar efeitos digitais na sua cara (a cópia a que assisti era em duas dimensões, mas esse é claramente um filme feito com a intenção de ser assistido em três).

Na China da dinastia Tang, o jovem detetive Dee viaja de uma cidade do interior à capital para fazer parte da polícia local. Imediatamente ao chegar, ele se vê enredado em uma trama mirabolante que envolve uma cortesã, vilões mascarados, parasitas bizarros e dois “monstros” (um deles não é o que parece). Dee é um análogo chinês de Sherlock Holmes, com poderes quase sobrenaturais de dedução e até um sidekick médico.

Enfim, investigações seguem, reviravoltas acontecem e as leis da física são alegremente ignoradas em lutas acrobáticas (esse é o tipo do filme em que uma abelha é cortada no meio por uma espada em plano-detalhe). As motivações são claras, a trama faz sentido e você sempre sabe o que está acontecendo nas cenas de ação. Não vai mudar a vida de ninguém, mas e daí?

***1/2 – Shey Longs

Coincidentemente, o admirável, mas decepcionante Branco Sai, Preto Fica (Adirley Queirós, 2014) também ostenta elementos de gênero, mas de um jeito radicalmente diferente. O filme utiliza como ponto de partida o caso real de um baile underground de black music na Ceilândia em 1986, onde um confronto com a polícia levou a atitudes excessivas amplamente motivadas pelo preconceito (o título se refere a uma frase repetida pelos policiais durante a batida).

Marquim da Tropa levou um tiro nas costas e ficou paralítico; Shokito foi pisoteado por cavalos e perdeu uma perna. Os dois interpretam versões de si mesmos no filme, mas apenas alguns trechos de documentário são salpicados em uma história de ficção científica que se passa em um futuro vago em que Brasília foi aparentemente dominada por um governo fascista. Enquanto uma vingança contra esse governo é planejada, uma trama paralela envolve um detetive que vem (mais) do futuro (ainda) para acumular provas a fim de compensar vítimas de violência racial.

Em uma entrevista para um site Português (o filme está bombando em alguns festivais, e eu não me surpreenderia se ele se desse bem na Mostra), Queirós disse que sua cinefilia é proveniente de filmes de gênero, e cita Blade Runner como uma influência importante, mas a única coisa que ele parece ter tirado desses filmes é uma vaga noção de conceitos futuristas. Branco Sai, Preto Fica joga pela janela qualquer senso de ritmo e progressão; as subtramas se conectam da forma mais tênue possível e as ideias raramente são concretizadas em cenas em que coisas interessantes acontecem. Eu nem estou dizendo que ele precisava seguir o esquema Bordwell e basicamente imitar suas influências. Experimentalismos até seriam mais adequados à estética lo-fi, que lembra mais Alphaville do que Blade Runner, mas quando se tem ambições narrativas, algo é necessário para que a história se torne envolvente.

Eu queria muito gostar desse filme. Filmes de gênero são raros no Brasil, e esse apresenta várias ideias interessantes. O problema é que ele não tem a mínima ideia do que fazer com elas.

** 

Em outras notícias, Leviatã, você foi destronado. Dois Dias, Uma Noite (Jean-Pierre e Luc Dardenne, 2014) acaba se de tornar o melhor filme que vi na Mostra até agora, e provavelmente vai continuar nesse posto até o fim. Eu sei, previsível. Eu até queria ser idiossincrático, mas não rolou. Talvez eu tenha minhas limitações. Uma dificuldade em não escrever em primeira pessoa o tempo todo sendo aparentemente uma delas.

Enfim, todo mundo sabe que os irmãos Dardenne têm uma fórmula bem específica: naturalismo, direção sem frescuras, ausência total de música não-diegética (exceto por apenas um caso, se não me falha a memória), tramas esqueléticas baseada em dilemas morais etc. Os filmes deles são tão desprovidos de gordura que cada coisa que se fale acaba contando como uma revelação. Assim sendo, não me alongarei.

Os funcionários da fábrica em que Sandra (Marion Cotillard) trabalha têm uma escolha a fazer: mantê-la no emprego ou ganhar um bônus de mil Euros. Uma votação está prestes a acontecer para decidir a questão, e Sandra tem o período descrito no título para convencer seus colegas a abrirem mão do bônus para que ela não seja demitida. Simples. Não.

Além de colocar a protagonista em uma situação extremamente desconfortável, o filme não força a empatia que você instintivamente teria por ela; alguns funcionários demonstram certo egoísmo, mas muitos claramente precisam do dinheiro. As reações de cada um são por vezes radicalmente diferentes, revelações não param de complicar as coisas e os dilemas vão se empilhando até que fica difícil respirar.

Por um lado, não há nada de revolucionário aqui; por outro, aquela velha história de não mexer em time que está ganhando nunca foi tão verdadeira. O dia em que os irmãos Dardenne revolucionarem a própria fórmula e conseguirem fazer uma obra-prima nesse nível meu cérebro vai escorrer pelas orelhas.

****1/2 – Fraternidades