A expectativa é, muitas vezes, mais um combustível para a decepção do que um antegozo – daí, inclusive, que derivam boa parte dos conselhos sobre aproveitar o caminho tanto quanto (ou mais) do que o destino. Minha leitura de Um outro amor, segundo volume da tijolesca autobiografia de Karl Ove Knåusgard, mostrou que se há a possibilidade de frustração quanto às expectativas, ela não é uma regra.

Eu havia lido o primeiro volume no ano anterior, confesso que em boa parte pelo frenesi que o livro vinha causando e pela liberalidade com que alguns críticos o chamavam de “o Proust norueguês”. Quem sabe eu tenha resolvido ler para criticar o que eu considerava os exageros de certos entusiastas colhidos no calor dos primeiros momentos pós-leitura. De qualquer modo, foi uma bela experiência, e continua sendo agora que eu terminei de ler o segundo volume, razão pela qual tentarei explicar brevemente algumas das coisas que o fazem tão agradável e instigante.

Knåusgard continua nos levando pela mão para conhecer sua vida, e novamente ficamos sem saber exatamente se aqueles eventos narrados são situações criadas ou exageradas em nome da literariedade da construção ficcional ou se ele realmente levou a sinceridade aos píncaros da superexposição. Acredito que boa parte da empolgação que o livro nos causa está em tentar imaginar o que é factual e o que é ficcional, dado que a expressão “minha vida é um livro aberto” é levada a sério pelo escritor norueguês.

Não é preciso ir muito longe ou muito fundo para conseguir perceber isso. Os longos e divagantes parágrafos que ele escreve sobre sua ex-mulher, sobre as sensações, as emoções e os sentimentos que ele vivenciava como parte da vida conjugal são estarrecedores. Isso para não falar das minúcias íntimas (não necessariamente sexuais) que se costuma considerar propriedade inviolável da vida a dois ou daquilo que às vezes é referido como o que fica “entre quatro paredes” (novamente: não necessariamente de natureza sexual).

Tratar o livro somente dessa forma – ressaltando essa embasbacante característica da autobiografia de Knåusgard – é contribuir para um mal entendido acerca deles. O combustível central da obra está longe de ser um polemismo barato desses que costumamos ver estampados em revistas de fofocas envolvendo celebridades e historinhas chatas e artificiais. A revelação de certas informações, impressões e detalhes não se presta a escandalizar por escandalizar, aparecendo, sim, como algo que constitui a urdidura mesma do romance autobiográfico, vindo a reforçar a visceralidade com que o autor buscou construir cada uma das milhares de páginas da saga Minha luta.

A descrição dos sentimentos e emoções que o dia a dia com sua mulher causam não constitui um ataque à pessoa dela especificamente, nem uma forma de chamar a atenção sobre si por conta de uma “revelação bombástica”, ela é muito mais pensada como um evento que constituiu a vida do escritor e que o marcou fundo o suficiente para fazer parte da narrativa. Além disso, é preciso sublinhar a sensibilidade com que ele fala de cada um desses pormenores, pois Knåusgard não é grosseiro – muitas vezes leva o leitor a achar que ele era pouco sociável, explosivo e criador das situações desagradáveis. Se há algum ajuste de contas no livro, é um ajuste de contas com o próprio autor e seu passado.

Como o título anuncia, o segundo volume da autobiografia está centrado nos eventos que levaram o autor a construir uma nova relação amorosa, dessa vez com a escritora Linda. Assim como no primeiro volume, a situação supostamente central não ocupa todo o livro, pois a proposta de construção literária escolhida por Knåusgard pressupõe contar diversas histórias de diversos momentos, o que faz com que o encadeamento entre uma e outra dependa da capacidade do escritor de tratar objetos e impressões como dispositivos de memória. O uso dessa “técnica” é, aliás, uma das razões pelas quais ele já foi chamado de “o Proust norueguês”: a narrativa extrapola as amarras do tempo e do espaço na medida em que vai se deparando com elementos que desencadeiam fluxos de rememoração que, por sua vez, se transformam em contação de histórias, alimentando-se deliciosamente por páginas e mais páginas.

Assim como com relação ao livro A morte do pai, Um outro amor coloca sérios desafios àquele que tentar produzir uma sinopse da história. Pode-se falar da relação com Linda, que é muito importante para o livro; pode-se falar sobre o processo de mudança para a Suécia, também relevante; pode-se, ainda, falar sobre o aprofundamento de sua relação com Geir Lundestad, que também ajuda a estruturar o livro. No entanto, cada uma dessas histórias concorre com dezenas de outras mininarrativas que, juntas apesar de sua especificidade, dão corpo ao livro.

A impressão geral que esse livro causa, bem como o anterior, é que ele é um grande romance de formação (bildungsroman). O que é uma proposta interessante, especialmente por se tratar de uma autobiografia. O enfeixamento das situações e significados é feito por um Knåusgard já adulto (ele tinha 45 anos quando o primeiro livro foi publicado), o que o coloca numa posição interessante para observar a própria vida, pois já há certa distância que permite que enxergue como as coisas se processaram de maneira mais apurada. E estando relativamente distante, consegue destilar sentido das pequenas coisas, fazendo de sua vida “normal” uma jornada literária ora delicada, ora rascante, mas sempre espirituosa.

Se se pondera sobre o fato de ser uma autobiografia, pode-se ser levado a pensar que seus significados estejam restritos também à esfera existencial individual do autor. Porém, isso é algo que não se aplica,  ao menos não rigorosamente, para Knåusgard e Minha luta. Ele consegue evitar que o texto autobiográfico se torne um exercício de egocentrismo por meio de uma sensibilidade de observação que dá um contorno universal a cada aspecto específico de sua vida. Isso, aliás, é o que causa a ira de Geir, em uma das divertidas conversas que ele tem com o escritor: “Você consegue escrever vinte páginas sobre uma ida ao banheiro e deixar os leitores com os olhos rasos de lágrimas.” (p. 124)

Considerando todos esses aspectos, acredito que sejam muito expressivas duas passagens da orelha da edição brasileira. Num primeiro momento, é possível ler: “Nas mais de 3 mil páginas de autoficção escritas por Knåusgard, as fronteiras entre a memória e a invenção são diluídas a tal ponto que sua própria vida é recriada e ressignificada.” Num segundo, lê-se o seguinte: “Vigoroso e honesto, Knåusgard parte de sua experiência particular de homem, pai de família e escritor para criar uma obra arrebatadora e universal.” (os grifos são meus)

Como alguém pode inventar coisas a respeito de si e, ainda assim, ser honesto? O que pode parecer um paradoxo na verdade não é. Mesmo ao transitar entre a memória e a invenção, Knåusgard não pretende enganar o leitor, por isso não está sendo desonesto. Ele pode alterar fatos a respeito de si e dos outros, o que é reprovável, mas Um outro amor certamente não é um livro que se centra sobre fatos, e sim sobre o impacto deles na forma com que o autor vê o mundo e como o entende como parte de sua formação. E nesse domínio os julgamentos morais são absolutamente mais complexos.

Por isso é que, antes de um deslize do texto, os dois trechos expressam justamente uma das características mais desconcertantes e mais impressionantes dos livros de Knåusgard: como sua forma de manusear a literatura reaviva, por meios inusitados, um dos desdobramentos mais clássicos do ato literário, que é a sua capacidade de não nos permitir ficarmos indiferentes, nem sequer ao repetitivo e banal dia a dia de um escritor norueguês.