Woody Allen nunca se afasta muito do “cinema de Woody Allen”: seus temas, seus personagens, os arranjos de roteiro repetem-se sempre, obsessivamente. Há filmes melhores e piores, mas o estilo do diretor corre marcante por todos eles. Ainda assim, desde Tudo Pode Dar Certo um filme não proporcionava a sensação de “clássico Woody Allen” como Magia ao Luar.

O mote é o mesmo utilizado pelo diretor em, pelo menos, outros dois filmes: seu protagonista/alter ego é contratado para desmascarar um aparente evento sobrenatural. Médiuns, mágicos e charlatães de forma geral são tipos comuns no cinema de Allen, sua forma de transportar o pastor em crise de fé de Ingmar Bergman para seu universo aparentemente mais leve e cômico. Essas figuras servem à narrativa de Allen com duplo propósito: escancarar o desejo humano de se aferrar a qualquer coisa que prove que a existência é mais do que miserável e finita, e a fluidez moral de um mundo em que a existência não é mais do que miserável e finita.

“Se Deus está morto, então tudo é permitido” diz Ivan Karamazov e Woody Allen. Em seus dramas ele se utiliza com frequência do assassinato para provar que no universo aleatório e sem sentido a única baliza moral é interna e, portanto, flexível. Nas comédias, uma menina bonita que se aproveita da ingenuidade alheia é suficiente.

E Emma Stone serve encantadoramente a esse propósito. É a primeira vez que Allen trabalha com uma mulher comediante e o resultado é fresco e familiar ao mesmo tempo. Stone domina a comédia do filme, suas expressões e gestos remetem às melhores screwballs dos anos 30 (período em que, aliás, o filme se passa) e sua mistura de ingenuidade e cinismo entregam uma perfeita golpista. A seu lado, Colin Firth continua sendo o inglês amargo, entediante, rígido e estranhamente atraente que o tornou o Mr. Darcy perfeito.

Os dois têm química, e Woody Allen lembra porque é, do alto de seu pessimismo, um gênio das comédias românticas. O final feliz é desejável porque o encontro romântico é a única possibilidade de final feliz em um mundo como esse, o amor a única coisa próxima de uma transcendência realmente existente.

Quando eu ainda estudava a obra de Bergman, diversos comentaristas apontavam Woody Allen como uma radicalização do cineasta sueco: se no universo de Bergman, Deus é silencioso, para Woody Allen não há Deus. Na ausência total de uma saída, sobra ao diretor realizar comédias cínicas sobre sua própria angústia.

Mas, ao contrário de Bergman, Woody Allen parece se tornar mais otimista com a idade. Em Annie Hall ou Manhattan os relacionamento humanos, apesar de serem a única fonte de sentido possível, eram impraticáveis, desencontrados, os personagens ficavam presos na falta de comunicação. Nos últimos anos não, mesmo os pares mais desencontrados encontram o amor, ou uma indicação de amor (como o final de Meia Noite em Paris).

Magia ao Luar parece caminhar para uma aceitação do desconhecido, a permissão da dúvida de que talvez exista um “mundo invisível”, mas não. Allen pode até permitir que personagens sejam felizes, mas ele jamais deixará que isso seja conquistado às custas da consciência da crueldade do mundo. É tudo muito cruel, mas é preciso tentar ser feliz assim mesmo  esse filme, que é ao mesmo tempo o mais agradável e mais denso da atual fase do diretor, parece dizer.

Verborrágico como apenas o Woody Allen dos anos 70 sabia ser, o filme discute à exaustão a existência de uma transcendência e as implicações morais dessa transcendência. A diferença de idade do casal principal, muito criticada dada as acusações de pedofilia que recentemente voltaram a rondar Allen, tem sim função narrativa: no universo do diretor, é impossível que alguém chegue à meia idade sem ser um pessimista ou um ingênuo um pouco patético. A juventude de Sophie Baker, personagem de Stone, é essencial para sua leveza e otimismo.

É a habilidade em casar a discussão filosófica complexa com um andamento fluido e piadas divertidas que fez de Woody Allen um cineasta memorável. Magia ao Luar é tão filosófico quanto um filme de Tarkovsky, mas embalado em um ritmo ágil, atores carismáticos e o belo cenário do sul da França. A sensação ao fim da sessão é de um filme adorável e ao mesmo tempo de grande esforço mental.

Parece redundante falar que um filme de Woody Allen é bom por ser um clássico Woody Allen, mas acho que se aplica quando se trata de um diretor capaz de um certo tipo de cinema profundamente particular e específico. Centenas de diretores citam Woody Allen como influência, outras centenas querem ser Woody Allen, mas cada vez que um filme “ao estilo Woody Allen” chega ao cinema, a sensação geral é que falta algo de genial. Não são apenas os diálogos rápidos, a ironia, o humor autodepreciativo e a trilha sonora de jazz, é o pessimismo profundo e a falta de esperança gritante que fazem de Woody Allen, Woody Allen. E é a habilidade de rir disso que o torna diferente do homem que ele mesmo queria ser. Magia ao Luar é Bergman, Dostoievski e Nietzsche, mas é acima de tudo Woody Allen.