Lucy é um filme bem estranho. Saído da mente insano-futurista de Luc Besson, de O Profissional (1994) e O Quinto Elemento (1997), gira em torno de uma inocente garota forçada pelo tráfico chinês (ou coreano, essa é uma das confusões da história) a servir como “mula”; a moça se vê transformada numa super-humana, cujas capacidades mentais se elevam gradativamente até os 100%, quando o pacote de drogas sintéticas rompe em seu estômago e o conteúdo é absorvido pelo organismo.

A história, que demorou dez anos para ser realizada, mistura um pouco de filosofia da mente, com As Portas da Percepção1 e outros filmes que já flertaram com questões sobre a potencialidade humana diante de um “conhecimento maior”, como 2001 – Uma Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick, 1968) e A Árvore da Vida (Terrence Malick, 2011), além de A Origem (Christopher Nolan, 2010), inspiração admitida pelo próprio Besson. Mas o diretor também consegue impor sua assinatura, salpicando muitas cenas de ação que, infelizmente, enfraquecem qualquer exploração filosófica mais profunda, transformando tudo em, apenas, pseudociência.

O autor parte da premissa – questionável, segundo especialistas – de que o ser humano só usa 10% de sua capacidade mental. Albert Einstein teria sido o gênio que foi porque conseguia utilizar 11%. Lucy, a protagonista de Besson, dado os infortúnios do destino, chegará aos 100%. A trama é divida em capítulos (20%, 40%, 60% e assim por diante) que, na teoria, pretendem mostrar a evolução da personagem à medida que adquire maior capacidade mental. Digo “na teoria” porque nem o roteiro, nem Scarlet Johansson, que incorpora Lucy, conseguem dar conta da proposta e não entregam nada além de um estereótipo de ser elevado, com superforça, alta capacidade de aprendizagem, captação e controle de sinais elétricos e outras sensibilidades desenvolvidas.

A Lucy de Besson e Scarlett não consegue fugir do clichê de se tornar robótica à medida que desenvolve seu intelecto, e as cenas em que busca “retomar sua humanidade” e ser sensível simplesmente não funcionam – patética é sua ligação, artificial e acelerada, com o policial francês. Realmente penso que a atriz não foi o encaixe perfeito dessa proposta, mas realmente não sei quem poderia substituí-la – talvez Sandra Bullock, especialmente nas cenas de Lucy que se assemelham muito ao final primitivo de Gravidade (Alfonso Cuarón, 2013).

Existe também um fiapo de trama paralela que explora o trabalho do professor Norman (Morgan Freeman), um cientista especializado nas questões na mente. O personagem funciona como voz técnica da narrativa, muitas vezes trabalhando numa narração em off exatamente igual aos documentários científicos que Freeman ocasionalmente narra (como Into the Wormhole, 2010).

O que Lucy tem de mais interessante se perde, infelizmente, na ansiedade de Besson, que deixa a edição deveras frenética, abandonando qualquer possibilidade de aprofundamento nas questões tão interessantes que levanta em sua plot. Assim como Lars Von Trier agradou a todos em Ninfomaníaca (2014) entrecortando cenas da história com paralelos não relacionados, Luc Besson utiliza-se da mesma técnica aqui e o resultado é, mais uma vez, positivo. Essa ferramenta, inclusive, funciona até melhor neste filme porque cria um paralelismo com as outras criaturas vivas que se encaixa muito bem com a história metafísica. Por outro lado, porém, quando a delicadeza é necessária o diretor fracassa, especialmente na cena em que Lucy viaja no tempo/espaço e encontra a primeira primata da História, também chamada Lucy. Ali o diretor poderia ter dado espaço tanto à filosofia contida em sua história, quanto à atuação de Scarlet, mas, infelizmente, é afobado demais, perdendo ambas.

Curiosamente o filme consegue ser, ainda assim, um ponto fora da curva em meio a filmes de ação cada vez mais pasteurizados. A ideia a ser explorada é boa, pena que cai em rumos errados ou contraditórios. Em todo o caso, Lucy é uma diversão agradável, e tem feito sucesso nos cinemas brasileiros.

  1. Importante livro de Aldous Huxley (1954), que narra suas experiências lisérgicas com a mescalina, alucinógeno extraído do peiote.