De tempos em tempos algum país sem grande tradição no cinema emerge com uma leva de bons filmes, é premiado em festivais importantes e dá ao mundo uma vitrine para um lugar esquecido, misterioso ou estereotipado. Um desses casos foi o Irã, na década de 90, recentemente aconteceu com a Romênia e a Turquia e este parece ser o ano da Grécia.

A Mostra deste ano traz onze produções gregas, incluindo o candidato do país ao Oscar de melhor filme estrangeiro, O Garoto que Comia Alpiste. Talvez seja uma reação um pouco atrasada ao barulho que fez Dente Canino alguns anos atrás, mas a julgar pela temática da maior parte dos longas é um país que busca entender, e retratar, a própria crise.

Todos os Gatos São Brilhantes é um filme sobre a crise. Mas talvez seja mais exato dizer que é um filme sobre uma crise: a crise de Elektra, uma moça de trinta anos vivendo na Grécia em crise. A protagonista é filha de pais intelectuais de esquerda e estudou artes fora do país. Hoje é parte de uma organização de extrema esquerda, vive com um homem que foi preso por atos políticos violentos e trabalha como baby-sitter. Com a prisão do noivo, Elektra se vê sozinha e presa no espaço entre o que deveria ser, o que é e o que gostaria de ser.

Ela vê as falhas no estilo de vida dos pais, a negligência por baixo do “respeito à individualidade da filha”, a valorização de um bom emprego e um bom marido apesar do discurso “antiburguês”. Mas se não quer essa vida, Elektra tampouco se vê no discurso do noivo, ou nas pessoas do meio artístico. O único com quem ela parece realmente se identificar é Petros, o menino de quem toma conta.

Elektra, assim como a Grécia, comprou um sonho que não era seu, e agora que entrou em crise precisa descobrir qual é, afinal, seu próprio caminho. A moça com nome de tragédia funciona como ótima metáfora para seu país: presa entre o passado, o futuro e as expectativas, seu desespero é tamanho que ela se corta com uma lâmina de barbear durante o banho.

Constantina Voulgares, diretora do filme, poderia ser acusada de elitismo e de querer realmente contar sua própria história, a crise não seria mais que um pano de fundo para parecer atual. Entretanto, há um mérito considerável em se olhar para os mais protegidos: ao acompanhar Elektra, que com seus mil folhas e bules de chá parece não sofrer efetivamente com a situação financeira, ela pode se afastar da denúncia social e refletir de forma mais filosófica e poética sobre a crise. Não lhe interessa gritar o mesmo que os manifestantes da rua, analisar o processo de corrupção e descaso que levou o país ao desastre, ela sabe que isso está em todo canto, tanto que frases de noticiário aparecem como fragmentos em seu filme, vindos de uma televisão ou um rádio. A diretora não precisa dizer o mesmo que os noticiários, a ela interessa refletir sobre um porquê mais existencial. Essa abordagem aparece já no título do filme: A.C.A.B. é uma sigla para “All Cops Are Bastards”, slogan presente em protestos anarquistas ao redor do mundo, mas que aqui ela transforma em uma frase absurda e poética, e no original ainda coloca um ponto de interrogação, como se interrogasse o que significam as frases de protesto que se veem nas ruas.

Elektra é, além de metáfora para a Grécia, parte de uma classe universal: a dos jovens intelectuais de classe média, dos artistas fracassados e perdidos, dos filhos de intelectuais que se viram frustrando pais por expectativas que desconheciam. E a mensagem da protagonista é corajosa: ela quer fazer da vida sua própria obra de arte, ser uma baby-sitter, cozinhar, simplesmente existir.

E o que o filme capta é isso, a simples existência de Elektra. Mas ao contrário de tantos outros filmes de diretores estreantes que buscam captar a banalidade da existência e acabam entregando filmes arrastados e vazios, Todos os Gatos São Brilhantes consegue captar a poesia e a profunda tragédia do banal, tragédia que já começa no nome da personagem. O trabalho da atriz e a fluidez da narrativa permitem ao espectador se identificar e reconhecer e ver ali um retrato da vida como ao mesmo tempo banal e aquilo que temos de mais importante.

O filme é lento, mas não arrastado; episódico, mas não vazio. No final há uma sutil narrativa, um arco que Elektra realiza em seu interior. Na última cena a protagonista ganha algo de Cabíria: sorrindo para adversidades, com a certeza de que, apesar de tudo, as coisas ficarão bem.