Cotejar uma obra literária que é tida como a maior expressão do barroco latino-americano é uma tarefa que exige um fôlego de análise distinto, pois faz-se necessário ir além daquilo que caracteriza o barroco “somente” enquanto expressão estética. É preciso penetrar (ainda que num escopo talvez pouco ambicioso dada a envergadura do livro em questão) nos sentidos históricos e, quiçá, filosóficos de uma tal empreitada literária.

A obra da qual se fala é o monumental Paradiso, do escritor cubano José Lezama Lima, publicado em 1966.

Poder-se-ia iniciar seu cotejo dizendo que se trata de uma obra semiautobiográfica, algo que, além de ser bastante banal, não ajuda muito na caracterização da sua força e sua singularidade literárias: é preciso buscar a formação de Lezama Lima em alguma medida para que a afirmação acima signifique alguma coisa. E para fazer isso, temos que remontar aos duros anos em que a personalidade do escritor, em especial sua verve poética, foram talhados no fogo da história, fogo especialmente quente quando se trata de Cuba no século XX.

Nascido em 1910, Lezama Lima padecia desde cedo de uma condição asmática que, ao que parece, sentira como um fado algo cósmico, mais do que uma condição biológica ou orgânica. Essa noção somente crescia e se revestia de sentidos obscuros, considerando seu círculo familiar, no qual, segundo sua filha Eloísa Lezama Lima, todos eram “mestres na arte da conversação, da narração e da alegoria” (p. 14). Na universidade, onde cursou Direito em vez do almejado curso de Filosofia e Letras, as portas fechadas da universidade nos tempos férreos do ditador Machado lhe ofereceram a possibilidade de dedicar-se a um estudo mais “livre” dos clássicos e a oportunidade para praticar sua poesia, que mais tarde se consagraria na revista Espuela de plata, e no grupo de intelectuais Orígenes.

Apesar de exercer o Direito como profissão, Lezama Lima nunca perdeu contato com suas raízes poéticas. A publicação do poema Muerte de Narciso, exemplo disso, o coroou de reconhecimento, especialmente entre os jovens poetas entusiastas de sua geração. Daí em diante ganhou notoriedade não só com sua poesia, mas também em ensaios e palestras: naquela apareciam tanto a exuberância do barroco (associado ao espanhol Luis de Góngora) quanto o apuro lírico, nesses, tanto a preocupação literária quanto a latino-americana.

Embora tenha lutado contra a ditadura de Gerardo Machado nos anos 30, como integrante do movimento estudantil, Lezama Lima teria uma posição um tanto mais dúbia durante o processo revolucionário que derrubaria a ditadura mais famosa da história cubana, a de Fulgencio Batista, nos anos 50. Entre os dois momentos históricos, Lezama Lima havia angariado uma posição bastante proeminente no establishment literário cubano, o que alçou sua trajetória a um patamar de autoridade e representatividade.

Para compreender o lugar de Paradiso na obra de Lezama Lima, e o lugar desse nas letras cubanas (e mesmo latino-americanas), não basta conhecer somente dados particulares da vida do escritor, é preciso ir além: temos de situá-lo em relação aos eventos revolucionários de 1959 e aos demais escritores cubanos, em especial Guillermo Cabrera Infante e Alejo Carpentier (essa talvez seja, aliás, a trindade dos maiores da literatura cubana). Só assim teremos uma noção do significado do escritor e de sua obra em um nível superior.

A revolução cubana não foi um evento isolado, mas um dos diversos processos revolucionários que se alastraram pela América Latina em meados do século XX, em grande parte desafiando as ditaduras que se mantinham no poder há anos, e também ao regime colonial fortemente arraigado na política, na economia, na sociedade e na cultura. A força histórica dessas revoluções criou poderosos pólos ideológicos e políticos, os quais nenhum escritor latino-americano pôde ignorar.

Em Cuba, a tomada do poder foi seguida pela criação de todo um governo e um aparato institucional, o qual previa tanto reordenamentos econômicos e políticos quanto culturais. Carpentier, Infante e Lezama Lima foram convidados a ocupar cargos nessas estruturas, na confiança de que pudessem dar sua contribuição na construção dessa nova civilização que despontava. Isso significava que esses cargos possuíam forte representatividade política, estando, portanto, sob uma série de pressões quanto às suas decisões e encaminhamentos.

Foi nesse ínterim que Lezama Lima discordou de certos rumos políticos que a revolução tomou, assemelhando-se (ainda que não tão drasticamente) a Cabrera Infante (esse chegou a ser exilado em 1965) e distinguindo-se de Carpentier, que partilhava da postura de politização mais direta e intensa em sua obra e em seu posto dentro do governo revolucionário. Tanto é que Lezama Lima, embora tenha permanecido dentro da estrutura do Departamento de Cultura revolucionário, foi removido do Departamento de Publicações (sob a direção de Carpentier) para a Biblioteca de la Sociedad Económica de Amigos del País.

Nesse ponto, conhecendo algumas informações importantes da trajetória individual e sócio-histórica de Lezama Lima, estamos em condição de analisar sua obra com um menor risco de sermos enganados pelas fáceis vinculações político-ideológicas das quais tanto padecem as críticas sobre obras e escritores latino-americanos. Estamos, pois, melhor posicionados para atender àquela demanda aludida no início desta resenha.

Dizer que Paradiso conta a história de José Eugênio Cemí, sua criação familiar, sua luta contra a frágil condição respiratória, suas descobertas sexuais e sua formação intelectual-existencial, definitivamente não faz justiça à exuberância do livro. A ostensiva utilização da linguagem, o obsessivo retrabalhar das frases, a preocupação com a sinestesia provocada pela escrita e, no melhor estilo barroco, a dramatização dos pequenos atos, situações e estados de espírito certamente escapam das sinopses que se possa produzir sobre o livro de Lezama Lima.

O escritor organizou revistas de poesia e escreveu ensaios tentando pensar a relação entre as composições e escrituras latino-americanas e as europeias, centros aos quais se referia não somente por sua tradição estética ou literária, mas também por sua carga histórica, por sua candente questão política (fale-se diretamente dela ou não) encarnada na velha polarização metrópole-colônia. Lezama Lima não ignorava tais espólios, mas os processava dentro de concepções estéticas muito peculiares, que formavam uma combinação muito pitoresca de amarras narrativas em prosa, para amparar longas digressões virtuosísticas de poesia em prosa barroca com um clima sombrio e soturno, mas ao mesmo tempo intenso e inefável.

Cada evento, por menor que seja, por mais irrelevante que possa parecer, ganha aspectos dramáticos e grandiosos na escritura de Lezama Lima. Pouco se passa no mundo objetivo, apenas algumas situações estão cuidadosamente inseridas, tudo para que a narração subjetiva e introspectiva, essa sim o núcleo do romance, possa se desdobrar por páginas e páginas. Um acontecimento “real” tal como acordar durante a madrugada, leva a digressões profundas e longínquas, que se processam numa dimensão etérea, onde só há o espiritualmente tangível. Ali, nessa dimensão, tudo ganha contornos proféticos, oraculares, místicos.

Somos levados a pensar que se trata de mais uma manifestação do famoso “realismo mágico” ou “realismo maravilhoso” tão tipicamente latino-americano, mas acredito que não se trate de uma afiliação como essa. Lezama Lima mergulhou numa dimensão barroca que, pela ambição que comporta e pela visceralidade que sustenta, estendeu-se por toda a cultura humana, incorporando elementos da sabedoria milenar chinesa, da mitologia greco-romana, da literatura simbolista europeia e da filosofia antiga, entre outras referências. E fez isso com tal intensidade que não se encaixa muito bem no “realismo mágico” e seu tom algo mais “regionalista”.

E eis aí, quem sabe, a grandiosidade de Paradiso: ao buscar referências clássicas do Ocidente e do Oriente, do passado longínquo e dos tempos mais recentes, Lezama Lima lança uma ponte, uma via de comunicação entre as civilizações clássicas e a experiência de construção de uma civilização latino-americana (aquela que se anunciava, esperançosa, desde 1959). Não se trata de macaqueamento de modelos europeus, de mera comparação nem de uma grosseira hierarquização, mas de uma tentativa de ombrear os grandes pela aproximação respeitosa e, ao mesmo tempo, desafiadora. O autor não quer mostrar o universal no cubano, no habanero, mas torná-los parte do universal por seus próprios méritos, por sua própria tradição.

Por isso é que a dimensão política de Lezama Lima jamais poderá ser separada de sua dimensão estética (nenhuma exegese literária pode operar tal separação), e é por isso que a análise de seu barroco fica vazia se separada de sua concretude histórica. Arrolar rótulos e procurar aproximações literárias jamais nos eximirá da exegese literária propriamente dita, e a julgar pela censura que sofreu Paradiso por parte do governo cubano da época, parece ter-se passado ao largo dessas considerações.