É de fato difícil almejar abarcar, minimamente que seja, a extensão física e espiritual dos célebres Ensaios de Michel de Montaigne. A seleção brasileira (ou Uma Seleção, como diz o subtítulo) lançada recentemente pela Companhia das Letras, possui mais de 600 páginas. A edição francesa, da Gallimard, muito mais (duas mil, se não me engano). Diante dessa constatação, limitar-me-ei a ressaltar traços gerais dos ensaios e pinçar, aqui e ali, elementos que ilustrem um pouco o amplo espectro de questões abordadas por Montaigne.

Montaigne escreveu os Ensaios no século XVI, principalmente no período em que, já de idade avançada, se retirou para a acolhida de uma torre na sua propriedade. De origem nobre e tradição familiar católica, Montaigne é, como o chama Eric Auerbach na ótima introdução da edição brasileira, um escritor antes de tudo. Numa época em que as ciências e as artes se encontravam em intensa efervescência, o autor não voltou-se de maneira exclusiva a qualquer campo definido, mas dialogou com eles ao longo de todos os seus textos.

A inspiração dos Ensaios é esmagadoramente clássica, curiosa herdeira da cultura greco-romana da Antiguidade. O diálogo com pensadores como Platão, Aristóteles, Sêneca, Plutarco, Virgílio e diversos outros é frequente e estrutura o próprio corpo do livro, pois são eles que oportunizam – e servem de referência – para Montaigne no tratamento dos assuntos que o motivaram e intrigaram. Perceber como essa influência tão fervorosa no pensamento clássico se adapta – ora harmoniosa, ora conflituosamente – às crenças católicas do autor, à sua formação nobre ainda calcada nos expedientes cavalheirescos e bélicos do medievo e às suas próprias opiniões é um exercício tão interessante quanto às vezes engraçado.

A “natureza” dos textos de Montaigne é estritamente pessoal:

“Pois bem, aqui estão meus humores e opiniões: escrevo-os por serem aquilo em que creio, não por serem aquilo em que se deva crer. Aqui só tenciono descobrir a mim mesmo, que amanhã porventura será outro se nova aprendizagem me mudar.” (pp. 88-89)

Isso, no entanto, não lhe restringe, mas sim enche de significados históricos tudo o que escreve. Sabemos a partir de que valores fala e como sua persona exprime noções de um estrato social e de uma sociedade, ainda que por vezes isso apareça precisamente no contraste dele com ela.

Justamente pelo seu “não-enquadramento” em um campo do saber específico, Montaigne goza de uma liberdade intelectual e reflexiva que é tanto sua potência quanto seu limite. Por um lado, o leque de temas que ele aborda dificilmente seria da alçada de alguém cuja “filiação científica ou acadêmica” fosse delimitada; por outro, precisamente esse não-aprofundamento em caráter específico limita o cotejo de certas questões. Longe de ser um demérito, no entanto, creio que essa característica torna sua obra expressiva numa perspectiva singular, pois Montaigne dialogou com usos e costumes que ele observou em sua vida tanto quanto com a erudição da época, ou seja, ele nos põe a par, através de seu ponto de vista particular, com a realidade “propriamente dita” da França no século XVI, convulsionada pelos conflitos dos huguenotes, com as mudanças na sociedade e pensamento europeus e, em alguma medida, com o horizonte que se desfraldava com as novas descobertas intelectuais, seja em nível espiritual ou material.

Adepto da moderação que era, Montaigne poucas vezes é categórico, mas nem por isso menos sagaz. Tem valores solidamente construídos, manifesta simpatia e apoio à virtude, enxergando-a tanto como expressão de excelência humana quanto como volúpia, objetivo primordial que deve guiar a existência humana. Tem em alta conta também a razão, enxergando-a como faculdade eminentemente humana e símbolo máximo de sua superioridade no reino da natureza, conquanto às vezes os fatos parecem obstinar-se em provar o contrário.

Nos Ensaios é possível encontrar reflexões interessantíssimas sobre, por exemplo, educação, como quando ele critica os discípulos que somente repetem as palavras dos mestres:

“Regurgitar a comida tal como a engolimos é sinal de sua crueza e de sua indigestão; o estômago não fez seu trabalho se não mudou o estado e a forma do que lhe foi dado a digerir.” (p. 92) “Saber não é saber de cor: é manter o que se entregou à guarda da memória. Quem sabe corretamente dispõe do que sabe sem olhar para o modelo, sem voltar os olhos para seu livro.” (p. 94)

Ou sobre sua peculiar visão sobre a morte, no ensaio “Que filosofar é aprender a morrer”:

“Meditar previamente sobre a morte é meditar previamente sobre a liberdade (…) Não há nenhum mal na vida para aquele que compreendeu que a privação da vida não é um mal. Saber morrer liberta-nos de toda a sujeição e imposição.” (p. 69) “Quem ensinasse os homens a morrer os ensinaria a viver.” (p. 73)

Ou ainda sobre a condição contraditória da humanidade (que manifesta-se, ironicamente [ou não], em seus próprios textos):

“Os que se empenham em examinar as ações humanas jamais ficam tão atrapalhados como para juntá-las e apresentá-las sob a mesma luz, pois comumente elas se contradizem de modo tão estranho que parece impossível que venham da mesma matriz.” (p. 202)

De sexualidade à educação, do cultivo de virtudes aos hábitos alimentares, da crueldade à ociosidade, os Ensaios de Montaigne se mostram belas sendas a serem trilhadas. A singularidade do autor é um convite a conhecê-lo melhor e, sondando-o, sondarmo-nos igualmente, num exercício reflexivo que certamente o agradaria, dado que era a elucubrações que revelassem os nuances e rincões mais belos e mais sórdidos da “natureza” humana.