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Verão Infinito #0

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Verão Infinito #5

Acredito que, até o momento, ninguém te disse que Graça infinita é um livro fácil. Difícil aí é ver, então, o que é um livro fácil. Talvez nenhuma obra literária possa ser considerada realmente fácil. Apenas aprendemos a ler um código de um determinado modo. Uma série de escritores tenta seguir esse código e conseguimos nos entender. Ao menos até certo ponto. Esse código (que pode ser chamado de língua, afinal de contas) tem seus limites bem acertados entre nós, ou melhor, entre aqueles de nós que se sentem no poder para acertar esses limites.

Infinite Jest, digo, o livro em inglês mesmo, foge dessa regra. Ele nos engana. Parece ser fácil, mas não por seguir um esqueminha, aquele esquema que nos faz entender O pequeno príncipe, por exemplo. A língua, o inglês mesmo, parece quase não literário de início. Estamos lendo apenas relatos muito, muito rebuscados de algumas pessoas em um futuro nada distante, que nem pode ser chamado de futuro direito. As ideias mesmo de anterioridade e posterioridade que a língua em geral nos dá parecem estar ali no texto, parece que vamos entender as coisas uma após a outra, como numa reação em cadeia. Hal Incandenza faz algo que deriva em outra coisa, e assim por diante. Mas não, Infinite Jest não funciona bem assim.

Lembro que quando tentei ler Infinite Jest pela primeira vez, anos atrás, indicado pelo professor Caetano Galindo, não consegui seguir com o texto. Ele me enganava a todo tempo. Começava a ler, parecia fazer perfis psicológicos fáceis das personagens. Isso até o momento em que, finalmente, tudo se perdia. Tentava formar, mais uma vez, padrões para entender o suposto enredo linear e falhava. Joguei a culpa na língua. Aquele inglês só me provava que deveria estudar mais gramáticas e ler mais antes de conhecer David Foster Wallace, um dos únicos que exercia quase a mesma admiração que James Joyce sobre o professor.

Eis que o mesmo professor traduziu o texto. Na minha, na sua, na nossa língua portuguesa. Apesar da recriação, dessa “transferência” linguística, Graça infinita está de parabéns como tradução, pois continua, do mesmo jeito, a se mostrar o texto difícil que era Infinite Jest anos atrás. Apesar dessa dificuldade, ele persiste como um convite para que nós entendamos que língua é essa que Foster Wallace nos oferece.

Confesso que ainda estou tentando entender a língua. Por vezes, o narrador – um único narrador? – parece falar diretamente comigo. Quer fazer com que eu associe Hal Incandenza, por exemplo, a algo que já li no passado, como Franz Kafka, algo que já foi notado antes nesse Verão Infinito. Olhem bem como Foster Wallace parece querer que lembremos dessa chave e simplesmente enfiemos no livro, como se ele fosse se abrir por uma leitura do código:

“Hal Incandenza tinha um sonho recorrente novo e horrendo em que estava perdendo os dentes, em que os dentes dele tinham ficado como xisto e lascavam quando ele tentava mastigar, se fragmentavam e derretiam e viravam areia dentro da boca; no sonho ele estava andando por aí apertando uma bola e cuspindo fragmentos e areia, ficando cada vez com mais fome e com mais medo” (p. 461)

 

A vontade da leitura do romance-chave, do roman à clef, é grande, como se tivéssemos simplesmente que procurar uma senha para a porta, como se Graça infinita fosse um videogame. A questão é que Hal não é um simples protagonista, do qual todas as revelações sobre a obra saem. A dinâmica dos anos estranhos e das personagens inusitadas, sempre novas, mesmo que com nomes que aparecem a todo instante, faz com que busquemos nos apoiar uma ou outra figura. Hal é com certeza com quem me senti mais à vontade para buscar ajuda, ainda que seja uma das personagens mais perturbadas que já vi. Talvez ele esteja tão perdido quanto nós, leitores, nesse mundo de tantas vozes, vozes narrativas mesmo. A polifonia de Graça infinita parece ser uma sala cheia de gente em desespero, mas falando em um tom baixo, apropriado a uma reunião empresarial, como se não precisasse de ajuda.

Esse sentimento tão adequado para a década de 1990, que não deixa de ressoar no futuro projetado pelo romance, vem principalmente da visão de Hal sobre os acontecimentos ao seu redor, que se degradam e perdem uma razão conforme a mente da personagem se destrói. Apesar da ironia de toda a narração, não parece existir de verdade uma realidade outra possível para o romance. A ironia parece ser o único modo existente para acompanhar a narrativa. Graça infinita parece fazer com que entremos – como também já se disse aqui – em uma paranoia sem fim. É sempre esse “sonho recorrente novo e horrendo”, sempre novo, diferente, estranho, cuja recorrência não parece fazer com que nem Hal nem nós nem todas as personagens se entendam como um cientista entenderia algum fenômeno que se repete sem fim. É um livro difícil, mas sigo na esperança que um dia vire um livro fácil. Vamos ver como a leitura segue.