MADE IN JAPAN

Há toda uma geração que cresceu conhecendo mais sobre um país do outro lado do globo do que a respeito da cultura brasileira. Jovens que sabem mais sobre pokémons do que sobre o Curupira, mais sobre ninjas e samurais da Era Meiji do que sobre a história recente do Brasil. Cresceram adorando o Japão.

Um livro nas mãos da juventude

Eles provavelmente darão uma chance ao novo romance de João Paulo Cuenca, chamado O único final feliz para uma história de amor é um acidente (Companhia das Letras, 2010). O que não é pouco para tais leitores, literariamente acostumados a romances que venderam milhões exemplares antes de serem traduzidos.

A capa e a história por trás da confecção do livro também ajudam a seduzi-los. A primeira é cheia de elementos gráficos e informação: uma metrópole na penumbra, um baiacu inflado, um gráfico de corpo humano, dois corpos de mulheres eroticamente atados e ondas do mar retiradas de uma famosa xilogravura de 1830. Montada com preocupação pela simetria, a composição torna-se leve e próxima a um aspecto mais tradicional da cultura japonesa, em que nada está fora do lugar.

A segunda relata a bagagem por detrás da tessitura do romance. O projeto Amores expressos (idealizado e patrocinado pela Companhia das Letras e pela RT Features) enviou 17 escritores nacionais a diferentes cidades famosas mundialmente para passarem um tempo e voltarem com um romance “romântico” na bagagem. A Companhia das Letras tem a preferência na publicação dos volumes, enquanto a RT Features adquiriu antecipadamente os direitos autorais para futuras adaptações cinematográficas. O autor do livro em questão passou cerca de um mês em Tóquio, a fim de escrever um livro retratando a capital cosmopolita.

Um Japão moderno e o estranhamento do leitor

O único final feliz para uma história de amor é um acidente surpreende. Já era de se esperar uma pegada mais moderna, mas a expectativa era de que a história seria vista pelos olhos de um brasileiro a passeio, algo meio Sofia Coppola, “estou com jet lag e não entendo o que o povo está falando”. Cuenca criou coragem e fez que nem Karina – do filme A máquina, de João Falcão –, que queria sair de Nordestina e ganhar o mundo: “eu vou ser lá do mundo como se fosse de lá”. Se você quiser aquele olhar estrangeiro, vai ter que encolher e acompanhar a trama através dos olhos claros da polonesa Iulana Romiszowska, única personagem que não fala japonês. Mas é melhor saber que é dada mais voz a uma boneca em silicone ultrarrealista do que a ela. De brasileiro, só João Gilberto tocando em certos ambientes.

Sim, entre os narradores há uma boneca, que tem tanto destaque que seus capítulos estão em itálico e vermelho, um ser com questões filosóficas e certa autonomia, quase-humana. Há outros capítulos sem narrador explícito, mas a maior parte da história é contada pelo protagonista, Shunshuke Okuda, apaixonado de tal forma que não omitiu seu nome, nem inventou suas origens e gostos, como costumava fazer.

Uma história de amores agridoces

A história do amor do salaryman pela ocidental de panturrilhas sólidas tem um twist: o pai que tudo vê. Câmeras, microfones e telefones grampeados em toda a cidade, imperceptíveis como um submarino imerso, repassam todas as informações para os monitores da Sala do Periscópio, onde o sr. Okuda vigia cada ângulo dos encontros amorosos do filho e cada palavra que seu “estorvinho” pronuncia. O protagonista sabe da vigilância, mas já está acostumado com o “Big Brother Tokyo” que será sua herança, o que leva a duvidar até que ponto ele age naturalmente.

E essa é apenas uma das coisas estranhas que desfilam pelo texto. Apesar de não haver um narrador com olhar estrangeiro, o livro é eficaz em provocar a sensação de estranhamento no leitor. Para isso, aspectos da cultura japonesa são citados, mas não mastigados; alguns já fazem parte da cultura pop, outros demandam um conhecimento maior. Exemplos? Há monstros destruidores de cidades, na tradição do Godzilla e afins; salarymans, expressão que dá pra sacar pelo contexto; poesia tanka; e pachinko, jogo que não se entende nem pesquisando com afinco. O leitor, além de voyeur num Japão bizarro, é convidado para uma espiadinha na Sala do Periscópio, em certas passagens.

“Um dia você entenderá que o único final feliz possível para uma história de amor é um acidente sem sobreviventes. Sim, Shunshuke, meuternal. Tudo pelo gostinho de dizer alguma variação do “Eu te avisei”. Um estorvinho, meu pequeno fugu idiota: um acidente sem sobreviventes”. A citação, além de explicar como certos amores platônicos funcionam, serve pra expor a difícil relação entre pai e filho: este tentando ter uma vida normal, mesmo na bolha tecnológica criada pelo outro; aquele, vulgo sr. Lagosta Okuda, levando até as últimas consequências seu papel pa gostinho um tanto agridoce.