Pawel Pawlikowski não é estranho aos prêmios e circuito de festivais: Last Resort, seu segundo longa, recebeu diversas críticas positivas e foi um dos destaques do Festival de Toronto em 2000. No entanto, desde então, os filmes do diretor têm feito carreiras mais modestas, com uma recepção boa, mas morna.
Em 2013, Pawlikowski retornou a sua terra natal e filmou Ida, que surpreendentemente se tornaria um dos filmes mais falados do ano seguinte e um dos favoritos ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Ida é diferente dos filmes anteriores do cineasta não apenas na locação, há nele um formalismo duro, um controle rígido dos planos e do ritmo que não existia nas outras obras de Pawlikowski. Ida é um esforço da estética talvez mais do que da narrativa, e essa opção funciona.
O filme conta a história de Anna, uma jovem que cresceu em um orfanato e agora está prestes a fazer seus votos e ingressar como freira em um convento. Antes disso, porém, ela deve encontrar sua tia, o único membro vivo de sua família que ainda resta. A tia lhe revela seu verdadeiro nome, Ida, e que seus pais, judeus, foram assassinados durante o Holocausto.
Há pouca trama em Ida. O arco de transformação é interno e há toda uma narrativa invisível no interior dos personagens. O filme é lento, arrastado, dando espaço para a sutileza das transformações. Os planos também são amplos, repletos de ar, como se tudo que acontecesse ali precisasse de espaço.
Pawlikowski coloca suas protagonistas sempre em um terço da tela e preenche os outros dois com paisagens gélidas, estéreis, devastadas. A Polônia que ele apresenta não é bela, mas hostil, dura, povoada por árvores desfolhadas e quilômetros de neve. Não é o objetivo do autor entrar em análises políticas sobre a história da Polônia, sobre a ocupação nazista e o subsequente período comunista, mas ele não pode deixar de sinalizar que se trata de um país destruído.
Tão destruído quanto o cenário é a tia de Anna, Wanda. Wanda é promotora, a “Wanda vermelha” do período soviético. Mais uma vez, o longa não olha a fundo, mas coloca questões em suas entrelinhas: quantos judeus, roubados de uma cidadania plena em épocas anteriores, não se aferraram aos governos comunistas, agradecidos por finalmente poderem existir?
Há um subtexto que talvez falte aos espectadores de outros países, mas que é fundamental para a profundidade de Ida: a Polônia foi durante toda sua história, antes e depois do Holocausto, um país profundamente antissemita. Descobrir que é judia não traz para Anna apenas uma confusão de identidade, mas uma parcela de sujeira. Em seu nome verdadeiro, ela é automaticamente pecadora.
O conflito entre pureza e pecado é um dos temas centrais do filme. Wanda é alcoólatra e promíscua, Anna viveu sua vida toda entre freiras e teme mais do que tudo identificar-se com a tia. Mas a podridão está nela, porque ela vive, porque tem desejos e, mesmo que pudesse ser mais forte do que tudo isso, porque é judia.
Há uma passagem em Os Irmãos Karamazov em que toda uma congregação se surpreende porque o cadáver de Zósia, um suposto homem santo, fede, enquanto a crença local é que a podridão é sempre um reflexo do mal. Em sua breve crise de fé, Anna compreende isso, vive Ida por alguns dias, vive sua sujeira, para redimir-se e purificar-se.
Ida escapa de forma bastante eficiente ao melodrama contido em sua premissa. O preto e branco ajuda a distanciar o espectador enquanto confere a tudo um tom de relato histórico ou fábula. Os enquadramentos enormes, com as figuras humanas diminutas, também retiram o foco do emocional e distanciam o espectador. Nesse sentido, Pawlikowski lembra Michael Haneke: o tema extremamente tocante é diminuído e resfriado pela extrema rigidez formal.
Contudo, a exceção ao sentimentalismo é feita no desfecho. O suicídio da tia e a breve crise de fé da jovem são conduzidos em outro tom, os planos se aproximam e o espectador é levado, pela primeira vez, a se envolver na história e torcer por um resultado.
Optar por uma aproximação do melodrama não chega a ser uma falha; o roteiro amarra muito bem suas escolhas e resolve sua narrativa de forma extremamente eficiente, mas enfraquece um pouco o que era, até então, um filme extraordinário. A recusa em adentrar os temas, sua brevidade (o filme tem 82 minutos), a simplicidade extrema dos cenários são as maiores vantagens de Ida. O longa é concentrado, enxuto, sem qualquer coisa fora do lugar exceto pelo sentimentalismo final.
Ao fim, Ida não é uma obra-prima, e empalidece perto de seu principal concorrente ao Oscar, o russo Leviatã. Mas é um belo filme, lindamente construído e que faz um uso excelente de suas escolhas estéticas e narrativas. Eu poderia apontar coisas que preferia que fossem diferentes, mas o filme resolve muito bem as escolhas que de fato faz.
Adoro suas resenhas, as vezes parece que nos não escolhemos filmes e livros, eles é que nos encontram em momentos que precisamos de algumas verdades.
Sua crítica é muito bem feita, muito completa, pega vários aspectos do filme como história e como obra de arte. Só não concordo que o filme seja “arrastado”. Lento, sim, arrastado, não. Achei o final surpreendente, estava torcendo para ela não voltar ao convento, mas realmente ela não tinha outra opção: tudo parecia tão “vazio”, que o “melhor” seria voltar ao “vazio conhecido”.
Gostaria de saber se você dá cursos em outros lugares que não a Casa do Saber (muito caro). Fiquei bem interessado no curso sobre Bergman.
tava caçando alguém que me falasse sobre o filme e, te encontrei; quero poder continuar lendo sua críticas.
obrigado professor!