“Se um dia destes parar não sei se não morro logo” é o começo de um dos poemas do último livro de Herberto Helder, falecido nesta segunda-feira, em Cascais, Portugal. Com certeza, foi dos escritores mais prolíficos e valiosos da língua portuguesa, não só da sua terra natal. É daqueles que não ficou só em seu mundo próprio, entre os seus, na comodidade. Viveu por aí, por bastante tempo.
Não ficou onde nasceu, em Funchal, na ilha da Madeira. Foi às guerras coloniais, onde se acidentou e combateu a violência, foi a Lisboa para estudar, onde começou dois cursos e nenhum terminou, foi à literatura toda, onde ficou. Quando resolver parar de vez com toda essa movimentação, foi-se, como no poema de A morte sem mestre, livro lançado no ano passado, infelizmente ainda indisponível em terras brasileiras, como quase toda a obra poética do autor, com a exceção de O corpo, o luxo, a obra e Ou o poema contínuo.
Não era só poeta de tantos livros; também foi prosador de uns três livros, sendo um deles, Os passos em volta (1963), um dos seus mais conhecidos por aqui, publicado pela Azougue Editorial. Foi por esse Herberto prosador que cheguei ao Herberto poeta. Falo de dois Herbertos, mas, na verdade, é difícil separar os dois. A ausência de versificação em seus contos não tira sua poeticidade. O mesmo pode se dizer de boa parte de seus poemas: sua versificação não elimina traços da narratividade que nos remete tanto à ficção. São formas diferentes de uma matéria talvez grande demais para uma só forma. Há uma narratividade na poesia, como em “Este lugar não existe”, que merece ser ouvido na voz do próprio poeta:
Cuja estrutura lembra muito um conto, dito conto, “Lugar lugares”, de Os passos em volta, que não deixa de ter sua relação com a obra mais recente do autor, cada vez mais focada no eu diante da vida, em uma metafísica que se firma aos poucos:
saio hoje ao mundo,
cordão de sangue à volta do pescoço
e tão sôfrego e delicado e furioso,
de um lado e de outro para sempre num sufôco,
iminente para sempre
Logo após esses versos, dos primeiros de Servidões (2013), lê-se “23.XI.2010: 80 anos”, num dos poucos momentos, acredito eu, que o escritor quer se ficcionalizar forçosamente. A morte, um dos temas mais recorrentes de sua obra, que parece se tornar cada vez mais presente com o avançar da idade, é dos tópicos que parece lhe forçar a se manifestar enquanto ser, enquanto concretude na poesia, justamente a iminência postulada. Sempre pelo mundo, sempre num “sufôco” (assim mesmo grafado).
“E é na morte de um poeta que se principia a ver que o mundo é eterno”, dizia lá nosso poeta ao final de um conto – justamente um conto! – de Os passos em volta. Em 1963, a relação entre morte e poesia já se fazia, mesmo que pela prosa, que parece trazer consigo uma apreciação em primeira pessoa da vida do poeta. “Abro-me à unidade da vida – e amo o passado e o futuro com um só fervor: completo”, diz no mesmo conto, mostrando que o nó de sangue que une vida e morte se mantém a todo tempo, pois somente pela sensibilidade do corpo se sente o fim da vida, como nestes poemas (definitivos, pois o poeta resta) de A morte sem mestre, gravados pelo próprio autor:
https://www.youtube.com/watch?v=tnTHU1eP3UQ