Deixando claro desde o início: Sobre a escrita é minha primeira leitura de Stephen King. De alguma maneira cheguei até aqui passando ao largo de um dos autores contemporâneos mais populares em todo o mundo, e não foi por esnobismo. Ainda assim, paradoxalmente, conheço bem um número razoável de suas obras, e isto graças às adaptações audiovisuais mais (Louca Obsessão) ou menos (Christine – O Carro Assassino) bem-sucedidas, que me possibilitaram ganhar certa familiaridade com sua escrita antes de, de fato, tê-lo lido.
Para estrear, decidi pegar justamente aquela que talvez seja sua única não-ficção, traduzida para o português em bonita edição da Suma das Letras. Logo na primeira página, o senhor King nos avisa: “Isto não é uma autobiografia. É, na verdade, uma espécie de curriculum vitae, minha tentativa de mostrar como se forma um escritor” (p. 19). Nas duzentas e tantas páginas que se seguem, o sentido da escrita é sempre o mesmo, oferecendo uma obra que não servirá aos fãs curiosos por destrinchar sua intimidade ou por saber das polêmicas, como o vício em álcool e drogas. Todos esses assuntos são tocados superficial e esparsamente. Mas em cada linha, o foco se volta para aqueles genuinamente interessados pelo processo de escrita e humildes o suficiente para dar atenção a alguém que já vendeu mais de 350 milhões de livros1 ao redor do mundo, a despeito da implicância de alguns em relação ao gênero e estilo de suas obras.
Não dá para agradar a todos os leitores o tempo todo; aliás, não dá para agradar nem a alguns leitores o tempo todo, mas é preciso se esforçar para agradar pelo menos alguns dos leitores por algum tempo. (p. 168)
Stephen King é daquele tipo de figura sobre quem não dá para ficar indiferente. Assim como outros escritores mainstream, muitos dizem que sua obra é de segunda categoria e lamentam as árvores derrubadas para que seus livros sejam impressos. E para aqueles que o acusam de ser “um sujeito vulgar e pouco culto”, ele responde sem constrangimentos: “em certa medida, sou mesmo” (p. 162). Por outro lado, há os que o veneram como o revolucionário de um gênero e mestre absoluto entre os autores ainda vivos. Assim, apesar de toda crítica “especializada”, suas costas permanecem quentes graças à blindagem de um público fiel que lhe garante um sucesso contínuo e sem comparativos. Mesmo com o subtítulo pomposo de “A arte em memórias”, aqui o autor tenta não abusar da “carteirada” do sucesso para legitimar suas dicas sobre a escrita, embora o fato de seu nome aparecer já na capa em fonte pelo menos dez vezes maior do que o próprio título, em certa medida já faça isso por ele.
A vida não é um suporte à arte. É exatamente o contrário. (p. 91)
Na salada mista de sua discussão sobre linguagem, dicas técnicas e pinceladas de confissões da vida pessoal, se há algo muito claro em Sobre a escrita é notar que Stephen King é um filho da América. Nascido em Portland em 1947, passou a infância se mudando graças a uma mãe estigmatizada pelo divórcio e sem condições econômicas ou emocionais para cuidar dele e de seu irmão.
Em meio a doenças e internações e vivendo nos “EUA profundo”, o menino Stephen parece ter desenvolvido nesse período a visão trágica e o humor negro que lhe seriam tão marcantes na futura carreira. Assim, suas lembranças do período são permeadas tanto dos cheiros e imagens nostálgicas, quanto de um profundo senso do ridículo: “porque, embora aquilo fosse, de certa forma, horrível, também era, de alguma forma, engraçado” (p. 22) – é do tipo de reação que aparece em diversos momentos da narrativa, com leves variações.
Quando digo que Stephen é um filho da América, estou dizendo não apenas da sua experiência de vida, mas também de suas influências culturais: esse menino que publicara seu primeiro texto num fan-zine de terror (cujo título original, “Eu sou um profanador de túmulos juvenil”, foi ceifado pelo editor para “Em um meio-mundo de terror”) foi um voraz consumidor do que hoje chamamos de Filmes B de terror, começando pela literatura, indo depois para o cinema e só mais tarde para a televisão. Encantado pelas produções cinematográficas, ainda jovem transformou o filme A Mansão do Terror num livrinho que vendeu na escola, sob um selo invetador por ele: a VIB (Very Important Book). Sem saber, começara assim o que virou praxe às suas criações: o diálogo entre mídias, com adaptações para diversas plataformas, sobretudo o cinema (Um Sonho de Liberdade) e a TV (Nightmare & Dreamscapes).
Escritores, quero reiterar que as cartas estão todas na mesa para que você pegue as que quiser. Não é uma sensação inebriante? Para mim, é. Experimente qualquer coisa que quiser (…). Se funcionar, ótimo. Se não, jogue fora. (p.168)
Foi ainda na infância que deu início a um dos elementos mais interessantes de sua carreira, que ele transformou em ensinamento de vida e motivação para seguir perseverando: aos 14 anos recebeu da Alfred Hitchcock’s Mystery Magazine sua primeira carta de recusa, logo pregada na parede, dando início ao que chamou de Mural de Recusas. E o que ele fez quando essa primeira carta negativa multiplicou-se e elas começaram a se acumular na parede? “Troquei o prego por outro maior e continuei a escrever” (p. 39), ele diz.
Mas não foram apenas com cartas de negativas que teve de se acostumar, desenvolvendo verdadeiros anticorpos de ironia e acidez, mas também com as críticas, muitas vezes pesadas, ao seu gênero literário de preferência. Desde que uma professora do colégio certo dia lhe perguntou porque ele perdia tempo “escrevendo lixo” e o obrigara a devolver o dinheiro ganho num dia inteiro de vendas de suas historiazinhas, até seus presentes detratores, Stephen confessa: “Muitos anos se passaram – anos demais, eu acho – até que eu perdesse a vergonha do que escrevia” (p. 46).
Tantos anos depois e diante de um sucesso inquestionável, de todo esse enfrentamento pelo menos uma lição ele aprendera sobre os outros:
Acho que só depois dos 40 anos me dei conta de que praticamente todos os escritores de ficção e poesia que já publicaram uma linha que seja foram acusados de desperdiçar o talento que Deus lhes deu. Se você escreve (ou pinta, dança, esculpe ou canta), alguém vai tentar fazer com que você se sinta mal com isso, pode ter certeza. (p. 46)
Depois de discorrer sobre as influências da vida real (da Guerra do Vietnã aos alunos que conhecera quando professor secundarista) às suas primeiras histórias (sobretudo Carrie – a estranha, seu primeiro sucesso), King chega a seu relacionamento com Tabitha King (“um casamento que durou mais que todos os líderes mundiais, com exceção de Fidel Castro”, p. 57), que conhecera na época da faculdade, personagem fundamental à manutenção de sua carreira, sobretudo nos momentos mais melancólicos, como no período do alcoolismo.
Em “Caixa de ferramentas”, terceira parte do livro, o autor se dedica a esmiuçar ainda mais o artesanato literário, com dicas ainda mais práticas sobre técnica, vocabulário e estilo, como “evite a voz passiva”, “advérbios não são seus amigos” e “eu não confio em pronomes”. Por serem muito boas e servirem para cada leitor/escritor de forma particular, vou me abster de comentários mais detalhados. Só quero dizer que é aqui que ele nos apresenta sua técnica de escrita com a “porta aberta” e com a “porta fechada” e seu conceito de Leitor Ideal – muito interessantes e que aqui não me cabe nada além de recomendar que se leia.
Embora desconstrua incessantemente o mito da relação mística do escritor com sua criação, ou seja, assassine a Musa da Inspiração, para o autor é fundamental que se priorize a história e, posteriormente, se dedique a uma boa revisão: “Aprimore o que puder aprimorar. Seria estúpido não fazer isso” (p. 171). Assim, a primeira escrita deve ser feita a portas fechadas, ou seja, com o autor esforçando-se apenas em exprimir no papel tudo o que deseja contar; já a reescrita deve ser feita de portas abertas, com o autor fazendo se pôr no lugar do leitor diante de sua obra. Além disso, para King “todos os romances são, na verdade, cartas endereçadas a uma pessoa” (p. 183) – as dele são para sua esposa – e é essa pessoa que devemos sempre ter em mente enquanto escrevemos: “Em outras palavras, você começa escrevendo algo só seu, mas depois o texto precisa ir para a rua” (p. 53).
Ainda assim, ele nos alerta, temos de proteger nossa história: “você não pode deixar o mundo inteiro meter a mão na sua história” – ainda que seja importante “abrir espaço para quem realmente interessa (…). Se todos que lerem seu livro apontarem algum problema (…), você tem mesmo um problema e é melhor fazer algo para resolvê-lo” (p. 185-186 passim).
Se você quer ser escritor, existem duas coisas a fazer, acima de todas as outras: ler muito e escrever muito. Que eu saiba, não há como fugir dessas duas coisas, não há atalho. (p. 126)
King ainda nos dá outras valiosas lições quanto à pesquisa (“O que importa é a história – e quando não se sabe, inventa-se”, p. 194), o exercício de abstrair os “leitores chatos, cujo único interesse na vida é, ao que parece, apontar o que os escritores fizeram de errado” (p. 196), a importância da honestidade (“Mentir é um grande e irreparável erro”, p. 149) e, é claro, a importância da leitura para qualquer pretenso escritor: “Se você não tem tempo de ler, não tem tempo (nem ferramentas) para escrever. Simples assim.” (p. 128). À certa altura (na página 147) King nos põe diante de um divertido desafio de exercício narrativo, que vale a pena gastar um tempinho para tentar realizar.
Chegando no final, o autor então nos conta um episódio que se passou precisamente durante a escrita desse livro, ameaçando inclusive sua conclusão, e que de tão inacreditável parece ser invenção, algo digno de uma de suas histórias mais trágicas (algo como a trama de Louca Obsessão, sem a Kathy Battes louca lhe sequestrando). Ainda assim, mesmo nesse episódio o autor consegue achar algum humor e ironia para a coisa toda e sua narração por vezes é bem divertida.
Felizmente Stephen King conseguiu terminar Sobre a escrita, o livro definitivo das suas memórias literárias. Nas páginas finais, o autor nos oferece uma lista de alguns dos mais de 60 livros que afirma ler por ano, incluindo clássicos recentes, como Reparação, de Ian McEwan e 2666, de Roberto Bolaño, e combinações estranhas como toda a obra de J. K. Rowling, seguida por Neil Gaiman e Liev Tolstói.
Bom, se outra coisa fica bem clara em Sobre a escrita é que Stephen King é um sujeito bem bizarro, mas basta ter visto O Iluminado ou Cujo – Cão Raivoso para já saber disso. Ainda assim, mesmo com esse jeitão esquisito, o cara parece ter se dedicado profundamente na construção dessa obra, e nas entrelinhas deixa transparecer a imagem de alguém verdadeiramente apaixonado por seu trabalho, feliz com o sucesso alcançado numa área tão inóspita e, o melhor de tudo, nem um pouco preocupado com seus pedantes detratores.
Houve períodos em que escrever foi um pouco como um ato de fé, como uma cusparada no olho do desespero. (…). A escrita não é a vida, mas acho que, algumas vezes, pode ser um caminho de volta a ela. (p. 212)
- Fonte: Wikipedia.com (em inglês). ↩
Oi, Vinicius!
Encontrei sua resenha meio por acaso, pesquisando outra coisa, mas foi ótimo porque comprei esse livro há algum tempo e agora fiquei com mais vontade de ler!
Abraço!
Excelente análise/resenha. Conheço bem o autor e este livro. Parabéns.