No ano passado, escolhi reler Orgulho e preconceito pela terceira vez. Third time’s a charm, é o que dizem, certo?
Terminou 2019, começou 2020, logo chega o Carnaval e nada de terminar o dito cujo.
Eu tentei a primeira leitura do romance da Jane Austen por obrigação quando estava no segundo ano da faculdade e larguei. Achei chatíssimo. Fui obrigada a tentar de novo: um artigo a entregar e uma matéria a concluir levaram à segunda tentativa. Genial. Entretanto, ainda chatíssimo.
Não me leve a mal, leitor. Reconheço a sagacidade da obra, a audácia da menina Elizabeth, a frase de abertura que talvez seja a mais genial que eu já li, mas nada disso me impede de achá-lo um livro chato e falhar justamente na tentativa de mudar essa ideia.
Essa não foi a primeira nem a única prova de resistência literária que eu apliquei a mim mesma. Quando eu estava na onda do fluxo de consciência, achei que seria uma ótima ideia ler Proust. Na primeira tentativa, eu não saí da segunda página e me senti uma fraude. Na segunda, fui guerreira e avancei: trinta páginas. Decidi que não devia estar no momento certo pra ler aquilo e segui em frente. Quem sabe alguns anos mais tarde?
Pouco tempo depois que entrei na editora em que trabalho hoje, estávamos na época do lançamento de uma nova tradução de Ulysses, que eu sempre quis ler. Tivemos uma aula incrível sobre a obra e fizemos um clube de leitura. Ótima oportunidade, né? A coisa começou bem, as primeiras cinquenta páginas fluíram em um ritmo razoável. Ali pela página cem, a coisa começou a ficar esquisita. Lá pra frente da cento e cinquenta, eu já não tinha mais ideia do que estava acontecendo e abandonei o navio, sim.
Em 2014, o Posfácio emplacou o Verão Infinito, a leitura coletiva de Graça infinita, do David Foster Wallace. Dessa vez, como eu me conheço e sei da minha tendência a desistir do que não me cativa, não disse aos colegas que participaria, mas tentei sozinha. Eu não preciso dizer o que aconteceu.
Só que é claro que eu vivo de livros, escolhi estudar literatura, trabalho com isso e, sendo fruto de educação católica… a culpa, meus amigos. A culpa não dá trégua.
Em Por que ler os clássicos?, Italo Calvino lista uma série de definições para esse grupo de obras e motivos pelos quais o leitor deve se permitir conhecê-las:
“Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.”
Ainda que Calvino também afirme que o clássico assim é classificado porque é atemporal e é um livro que nunca termina de dizer aquilo que se propôs a dizer, vale ressaltar que o leitor também precisa estar em condições de recebê-lo. Não basta que a obra seja indispensável ou de qualidade ímpar, é necessário que a pessoa que a acessa também esteja disponível e apta a recebê-la em sua completude.
Não há nada de errado com um leitor que não quer, não gosta, não consegue terminar determinado livro. O ponto é que ninguém é obrigado a gostar de nada só porque é clássico ou porque alguém resolveu dizer que é bom.
Calvino também diz que “o ‘seu’ clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele”. Portanto, o leitor pode sair em busca de definir a sua própria lista de indispensáveis sem peso na consciência. E tudo bem abandonar aquele Tolstói se ele não estiver fazendo sentido pra você.
Eu decidi hoje mesmo que é isso, estou abandonando a Jane Austen de novo. Desculpa, Jane, eu tentei. Talvez eu veja o filme de novo. Enquanto isso, eu sigo tentando me livrar da culpa e descobrir o que é essencial pra mim.
Fernanda Dias é formada em Letras pela USP e pós-graduada em Produção Editorial pela Fapcom. Entrou no mercado editorial em 2012 e assim descobriu que girar a roda do capitalismo não seria horrível se uns livros estivessem envolvidos no processo. Atua nas áreas de aquisição e direitos, além de revisar, traduzir, devorar séries de qualidade duvidosa e ser excelente mãe de pet.
Acho que tá tudo bem mesmo abandonar Jane Austen (e demais livros que travam).
Li Orgulho e Preconceito por conta de um clube de leitura. Achei uma obra bem ok… Não me tocou. Abandonei razão e sensibilidade tbm da Jane… Entendo toda a importância da autora pra humanidade e até em outras obras, mas nao rolou.
Brinco que ler Jane Austen me serviu pra embasar minhas críticas a outras obras, co.o Senhora.
E tá tudo bem
Embora eu tenha lido e relido Orgulho e Preconceito e este estar com certeza entre meus livros mais amados, eu entendo perfeitamente a sensação de culpa por abandonar uma obra que seja clássica, ou mesmo que não seja, mas que todos amam. Tudo tende a ser ainda pior quando o livro é de biblioteca e você fica renovando, renovando… Mas hoje em dia, quando vejo que começa a ficar muito chato, começo a ler outro livro, que sei que é bem legal, paralelamente; assim, mesmo que eu venha a abandonar, não fico com raiva dele por “atravancar” a listinha de livros legais que me esperam rsrs.