Dando sequência ao especial “Mês dos clássicos”, debrucemo-nos hoje sobre uma obra que é tida como uma das pioneiras do romance moderno: Robinson Crusoé, do escritor inglês Daniel Defoe (1660-1731).
O livro, publicado em 1719, encontra-se naquele conjunto de obras literárias cuja inovação foi tamanha, e cujas “soluções formais” se tornaram tão difundidas, que sem circunstanciá-la historicamente e literariamente ficaria difícil perceber qual foi a sua grande ruptura ou seu grande pioneirismo. No que tange a Robinson Crusoé, surpreende como sua construção se assemelha a formas narrativas que são absolutamente comuns até o presente, e essa talvez seja uma das evidências mais expressivas de sua profunda influência: a própria concepção de narrativa literária com a qual estamos acostumados foi em grande parte talhada por Defoe. A relativa “não surpresa” que temos ao ler o clássico que é Robinson Crusoé é uma das principais provas de que ele fez escola no desenvolvimento da literatura contemporânea.
Mas, antes de nos estendermos em considerações em torno de seu legado, falemos sobre a trama do livro, a história propriamente dita que ele conta.
Quem narra as aventuras e as desventuras do livro em questão é o próprio protagonista, Robinson Crusoé, filho de uma embrionária classe média inglesa (embora de mentalidade algo rentier, tão burguesa quanto aristocrática), cuja condição, como ele nos conta, era uma “condição intermediária, ou o que se poderia chamar de situação superior de uma vida inferior”1. Tal como se encaminhava seu futuro, Crusoé estaria garantido, bastava que seguisse nos passos do pai e amealhasse algum cargo, ou, ainda, que administrasse com prudência seus proventos. Em concretizando tal projeto, levaria uma vida tranquila e estável, cujos possíveis solavancos mais seriam a doce oscilação de marolas episódicas.
Sobre essa existência no mundo, essa situação material-existencial, Defoe é incisivo, e faz Crusoé declarar que “(…) havia muito [que seu pai] (…) descobrira, por experiência própria, [ser essa] (…) a melhor condição do mundo, a mais de acordo com a felicidade humana, pois não nos expunha às misérias e às privações, ao trabalho e ao sofrimento da classe obreira da humanidade, e não nos constrangia com a altivez, o luxo, a ambição e a inveja da classe superior”2. Apesar dessa pequena prédica acerca das vicissitudes da mediocridade, Crusoé não parece se convencer, e segue algo atormentado por ter tudo tão definido de antemão. É diante dessas condições que ele se lança a aventuras marítimas, fugindo sem avisar seus familiares.
Decorrem diversas e temerosas travessias antes daquela fatídica, cujas implicações constituem o motor de todo o restante da história. Crusoé navega pelos mares europeus em diversas rotas, chega a se estabelecer no Brasil (onde se torna administrador de uma plantation açucareira) e se lança a uma viagem rumo à costa africana para apresar escravos, tudo isso antes que uma providencial tempestade se abatesse sobre seu navio e o levasse a pique na orla de uma ilha deserta, deixando todo o restante da tripulação morta. É de fato aqui que a história de Robinson Crusoé (ou pelo menos sua faceta mais célebre, a sua porção mais volumosa) se inicia.
A partir dessa ocorrência (que se encontra em ponto bastante avançado da obra), toda a trama se redireciona. Não se trata mais de acompanhar as aventuras de Crusoé, mas, ao que parece, suas desventuras. Já não se está falando mais de um livro que narra peripécias econômicas e existenciais de um certo administrador inglês num mundo colonial, mas de uma história sobre como esse mesmo sujeito terá de encontrar os meios para superar seu infortúnio, seja para sair da ilha seja para sobreviver a ela enquanto constrói sua fuga. Me parece que é nesse segundo momento que Robinson Crusoé sequestra completamente a atenção do leitor.
Há algo de sedutor nas ilhas. A recorrência delas no pensamento dos homens causa essa suspeição, e a obra de Defoe talvez nos ajude a tentar entender por quê. Desde o momento em que Crusoé, pela primeira vez, resolve se focar mais em estabelecer as bases para uma estadia longa na ilha (ao invés de tentar escapar dela) até o desfecho do livro, somos levados a acompanhar cada ínfimo passo que ele dá no (re)estabelecimento dos rudimentos materiais de uma vida civilizada. O livro poderia ser uma narrativa crua sobre os limites do homem, sobre sua fragilidade ou sobre sua barbarização ou bestialização na luta pela sobrevivência, mas não é. Robinson Crusoé é uma narrativa em que o homem, o indivíduo, se sobressai, apesar das adversidades que a natureza lhe impõe – e essa é uma das razões pelas quais ele é tão expressivo, em termos literários e em termos históricos.
O protagonista domestica a natureza, e seu relato é o de uma sobrevivência bastante bem-sucedida. Crusoé não só consegue evitar a vulnerabilidade alimentar e climática, mas chega, mesmo, a gozar de “regalos” tais como uma casa bastante sólida, um cercado forte, queijo, carne, pão, utensílios diversos (vários de sua confecção), etc. Se quiséssemos falar em forma de síntese, talvez pudéssemos dizer que mais do que sobreviver, Robinson Crusoé conseguiu praticamente viver.
E a vida, mais do que a sobrevivência, deve-se à sua engenhosidade, sua abnegação em favor do trabalho duro, da constância, da racionalidade e do planejamento. Embora seja verdade que ele foi em muito beneficiado por ter conseguido salvar diversas ferramentas, mantimentos e recursos do navio que naufragara, mesmo a obtenção desses pode ser contabilizada como fruto de sua astúcia e de seu engenho, pois o processo de retirada (como Crusoé nos narra minuciosamente) esteve longe de simples. É essa tônica que consegue fazer o relato de um naufrágio ser uma narrativa amena e não cruenta, e a sobrevivência uma experiência de humanização, ao invés de animalização.
O crítico literário inglês Ian Watt estudou a obra de Daniel Defoe (juntamente com as obras de Henry Fielding e de Samuel Richardson) em seu livro A ascensão do romance, procurando rastrear tanto o significado estético-literário de suas narrativas quanto seus significados sociais e históricos. Dentre outras conclusões ele aponta como uma das inovações desse(s) pioneiro(s) do romance o preocupar-se com o realismo e com a verossimilhança na apresentação das situações ficcionais, sendo suas obras expressões de uma nova racionalidade que grassava o pensamento europeu. Os personagens, suas decisões, os cenários, a trama, etc., passam a ser retratados dentro de uma ótica individual e fortemente empírica, alternativa ao então imperioso apelo às narrativas bíblicas ou épicas, o que permite que eles tenham muito menos de abstração e muito mais de realismo. Essa preocupação é um dos grandes legados de Robinson Crusoé, pois se difundiu enquanto espinha dorsal da construção de diversas obras literárias que a sucederam, desde o século XVIII até os nossos dias.
Watt vê Robinson Crusoé (e outros personagens de Defoe) como encarnações do homo economicus típico da Economia Política, por sua racionalidade sistemática voltada ao lucro (chegando às vezes a quase transformar Crusoé num tipo ideal burguês, algo weberiano). Embora Watt talvez carregue um pouco nas tintas ao defender essa saliência ideológica da narrativa de Defoe, não se pode negar que “(…) em Crusoé, a contabilidade supera outros pensamentos e emoções”3. A sobrevivência na ilha deserta se torna possível pela abnegação de Crusoé em lançar-se aos trabalhos, sendo inclusive por isso que as descrições sobre cada pormenor de suas empreitadas (em domesticar cabras, em tecer cestos, em lidar com as chuvas, em cultivar a terra, em construir um forno de barro, etc.) são tão numerosas. A transbordante e verborrágica narrativa de Defoe, que às vezes parece estar um tanto sem direção, dá-se a esses préstimos ao longo de todo o seu corpo, entre outras razões pela necessidade que Defoe enxergava em tomar esses fatos e situações como recursos de verossimilhança – o que só reforça essa visão de mundo.
O livro de Defoe, não bastasse ajudar a inaugurar, ao lado de outros escritores, o formato e a “voz narrativa” típicas do romance moderno, acabou também por delinear caracteres do pensamento de um grupo social cuja existência histórica se fez sentir intensamente no mundo moderno, tornando-se um documento humano na melhor acepção do termo. Por tal, por esse conjunto de razões, faz-se digno de figurar no rol dos clássicos.