O mês de maio marca o fim da Segunda Guerra Mundial na Alemanha – data que neste 2020 chegou na marca de 75 anos. Em nossa pequenez humana, isso é tempo o suficiente para a vida inteira de toda uma geração. Tempo o suficiente para vermos essas questões como ultrapassadas, pertencentes a uma era de fotos em preto e branco.
Enquanto era aluna de Ensino Médio, sempre sentia um tom de “bem feito para a Alemanha” nas aulas de História (e, bem, eles tiveram mesmo grande parte da responsabilidade do conflito). Mas é interessante ver como eles mesmos contam essa história, como país que fez ou testemunhou tudo isso acontecer. Podemos ter acesso à parte desse pensamento por conta dos 75 anos do fim da guerra, e também devido ao coronavírus, que fez com que uma exposição física em Berlim se tornasse virtual. A exposição interativa, disponível em alemão e inglês, promovida pelo órgão de cultura Kulturprojekte Berlin, sobrepõe imagens atuais de pontos importantes da cidade com fotos históricas, convidando as pessoas a experienciar a guerra do começo ao fim.
Mas o que a exposição mais conseguiu fazer comigo é deixar muito claro que questões da época estão bem longe de ser encerradas.
Começo já com o material de divulgação da exposição. São cartazes com imagens de prédios históricos destruídos e em preto e branco com as seguintes frases: “No começo era a eleição”, “Você sabe o que está escolhendo?”, “Uma eleição e seu resultado”. Pois é, nem sempre lembramos dessa parte: Hitler foi, na verdade, eleito.
Um governo eleito que viu num momento de crise a justificativa de acabar com os meios democráticos e criar um governo totalitário. Crise, inclusive, que o dito governo acentuou em diversos momentos.
A exposição também não se omite em mostrar alguns paralelos com tempos mais atuais e relembrar que pensamentos muito parecidos com os que levaram à Segunda Guerra Mundial ainda estão por aí.
Pensando em tudo isso, me lembrei de um monumento bastante discreto porém bem inteligente lá de Berlim, uma cidade que insiste em mostrar, sempre que pode, suas cicatrizes. Quando se chega lá, não se vê nada além de uma praça na Universidade Humboldt de Berlim – a vida segue como se nada estivesse acontecendo.
É preciso chegar mais perto para ver o vazio. A foto é ruim (vou pôr a culpa no dia nublado e na câmera do celular), mas é isso mesmo: um vidro no chão da praça, através do qual se vê uma biblioteca completamente vazia. A explicação vem um pouco depois.
“No meio dessa praça, estudantes nacional-socialistas queimaram, no dia 10 de maio de 1933, o trabalho de centenas de escritores, jornalistas, filósofos e cientistas livres.” O memorial, de autoria de Micha Ullman, tem ainda a seguinte epígrafe: “Era só um prelúdio. Onde se queimam livros, também se queimam pessoas”, uma frase que o escritor Heinrich Heine escreveu em 1820, mais de cem anos antes da data em questão. E ele estava certo.
Grande parte da insistência alemã de marcar essa data e marcar em suas cidades o nome dos mortos e os prédios destruídos (há todo um estilo arquitetônico de restauração que deixa a destruição anterior muito evidente) é a necessidade de lembrar para que não aconteça de novo.
A verdade é que, em anos recentes, vimos vários ataques aos livros e ao conhecimento acontecerem. Para além de serem definidos como um montão de muita coisa escrita, o prefeito do Rio de Janeiro tentou proibir a circulação de um quadrinho na Bienal do Livro, e Luisa Geisler foi desconvidada de um evento depois de uma bibliotecária achar que seu livro tinha “linguagem inadequada”. No fim de semana em que termino de escrever esse texto, o Ministério da Saúde anunciou que vai rever os números do Covid-19 por considerá-los fantasiosos (o que rende toda uma outra conversa sobre gêneros literários).
Ainda não queimamos os livros em praça pública. E conhecer a história de quem o fez pode nos ajudar a não chegar nesse ponto.
Gisele Eberspächer é jornalista e tradutora. Vive entre livros e não sabe se gosta mais de café ou chá – então toma os dois compulsivamente. Fala sobre literatura no canal do YouTube “Vamos falar sobre livros?” desde 2012.
Muito bom, Gisele! Sensível e essencial o seu texto.
A questão é sobre quem tem a consciência ou não da importância desse olhar para trás… ou quem olha e não se importa e que talvez até inveje não ter podido cometer essas barbáries. Me assusta o perfil de pessoas que não se sentem sensibilizadas, e, arrisco dizer, se tivessem poder suficiente nas mãos repetiriam triunfantes as atrocidades, os massacres, toda a destruição, hoje!
E hoje no Brasil temos um massacre diário, incontáveis mortes, sem uma guerra (declarada). Quem incendeia essas vidas? Quem transforma milhares de pessoas em cinzas a cada minuto, hoje? O passado é presente.
E tudo começou com uma eleição…