Apresentar Nelson Rodrigues é quase uma redundância, e isso é especialmente verdade acerca do já-clássico A vida como ela é… A despeito disto, arrisco-me a supor, para fins argumentativos, que alguns detalhes objetivos precisem ser clarificados quanto à última: trata-se de uma série de contos, estórias de 3 a 5 páginas, que foram escritas por Nelson Rodrigues entre 1950 e 1961, e publicadas no jornal Última Hora no mesmo período, numa coluna diária – sim, isso mesmo, diária!

Um inventário de temas (“obsessões”, talvez dissesse o escritor) facilmente mostraria que prevalecem nesses contos o adultério e o casamento, nessa ordem, e que servem como ingredientes também aquele receituário típico da tradicionalérrima família de classe média brasileira: a moral, os bons costumes e os escândalos. Há maridos bananas, esposas fogosas, canalhas de prontidão, amigos fura-olho, sogras megeras, cornos mansos e também cornos vingativos, pais ciosos, filhas espevitadas e toda uma fascinante e sórdida fauna humana. Todos, sem exceção, tantalizados pelo impulso sexual, presas de uma lubricidade que qualificaríamos freudiana se o escritor em questão não nutrisse tamanha aversão à psicanálise e seus adjacentes.

O curto diálogo entre dois amigos no conto “Granfa”, quando um hesita diante de um convite ao adultério e o outro o aconselha, condensa um dos mais recorrentes dínamos literários de A vida como ela é…:

“- Ela não é mulher?
– É.
– E tu não és homem?
– Sou
O outro simplifica a questão:
– Sendo ela mulher e tu homem, está tudo resolvido. O resto não interessa. Qualquer lugar é lugar.” (p. 208, A vida como ela é…– Volume 1)

Qualquer um que, andando na rua, ouvisse um diálogo como este, diminuiria o passo até o limite do decoro para saber aonde essa conversa vai. Amarraríamos o sapato ou olharíamos as horas no celular para ter um pretexto para se demorar um pouco mais nas imediações. É exatamente sobre isso que quero falar, sobre a sensação que os contos causam e que Rodrigues usa deliberadamente como premissa, à qual chamarei de poética da cumplicidade.

O que as histórias de A vida como ela é… causam, aquilo no que elas se baseiam para se realizar literariamente, é o apelo do sórdido, do proibido e do passe de voyeur que damos a nós mesmos. Os contos flagram nossa curiosidade e cobram dela seu tributo, tornando-nos como que cúmplices do fato dado, do adultério da vez. Quando uma moça age de modo misterioso, quando sogro e nora (ou cunhado e cunhada) são muito próximos, quando um amigo do casal começa a passar os serões ali muito frequentemente, quando um marido vive cansado…pronto! Já estamos a esperar a sordidez vir à tona.

Essa antecipação de preliminar compõe parte fundamental do sumo literário da obra de Nelson Rodrigues, e é operado por ele com maestria. Algum escritor policial disse certa vez que se uma arma aparece na história, ela vai ser disparada eventualmente. No caso de Rodrigues, poderia se dizer que há um casal, hora ou outra eles vão acabar transando – é um exagero sim, eu sei, mas muito perto da verdade.

Ele indulge nossa perversão conscientemente, a navega e dali arranca seus clímax, suas catarses. Que por isso mesmo são sempre co-clímax, co-catarses, porque é a nossa cumplicidade que confere interesse artístico ao que está em tela, ainda que como prazer meio mórbido: primeiro voluntariamente, depois com o braço torcido às costas. Ele nos torna cúmplices da perversão, apela para nossa malícia, dá uma piscadela marota ao leitor a cada vez que faz desfilar uma nubente fogosa, um contínuo medíocre ou uma esposa desgostosa, donde sua poética da cumplicidade.

Nelson Rodrigues é nosso Tennessee Williams, mas com uma intensidade tropical, com uma virulência diretamente proporcional, no espectro oposto, ao moralismo tradicional de uma sociedade patriarcal, arcaica, como a nossa. O comichão espiritual que a boa literatura causa é aqui provocado pela subversão deliberada dessa moralidade, à qual ele curiosamente subscrevia, conservador que sempre foi. A natureza pecaminosa dos episódios ficcionais (ou o fato de que eles seriam predominantemente vistos como pecaminosos diante da moralidade historicamente dominante aqui) é o ingrediente fundamental de A vida como ela é… E o autor foi perspicaz o suficiente para percebê-lo, usando-o a favor de sua realização artística, fazendo o artefato literário ser também um retrato social, cultural, histórico.

Mas como o catolicismo reivindicado por Rodrigues ensina o pecado mas também a piedade, há pelos pecadores uma surda solidariedade. Não é raro que o impulso do sexo seja acompanhado pelo arrebatamento do amor, e que por debaixo de um adultério encontrem-se mazelas existenciais que douram o negrume do pecado com a carga dramática das regiões plenamente humanas. Os suicidas que habitam A vida como ela é… são os exemplos mais visíveis, mas há também as esposas infelizes, os maridos acabrunhados pela exigência da hombridade, além de uma porção de desgarrados da castradora moralidade burguesa, pelos quais Nelson Rodrigues nutre algo como uma compreensão disfarçada, inconfessável.

O epíteto de “anjo pornográfico” não podia ser aqui mais acertado, pois o que se lhe encontra de explicitamente profano é todo o tempo contrabalançado por um sagrado sutil. Não para que disso se anulem ambos, mas para que, transida por esse embate épico mantido em suspenso, possa surgir um dos mais completos retratos da classe média brasileira no século XX, com seu grão de humanidade, de vícios e de dramas.