Tenho, às vezes, um desejo inconsciente de conseguir usar todo o potencial da minha memória para reavivar as melhores lembranças da vida – uma retrospectiva documental para rememorar tudo o que senti naquele fragmento. Em outras, gostaria de me esquecer de fatos ocorridos em determinados anos. Vá lá, a ficção de Charlie Kaufman mostrou que mesmo querendo apagar traumas, podemos nos arrepender um tempo depois. Mas é difícil não desejar esse reboot de tempos em tempos.

Sempre me gabei de ter uma memória vívida pré-25 anos de idade. Nomes de filmes, diretores, diálogos, ano de lançamento, número de prêmios; tudo estava em fácil acesso e pronto para ser ejetado pela ponta da língua. Não era apenas para cinema, e um pouco para literatura, mas muitos dos acontecimentos da minha adolescência eram frescos demais.

Cada palavra, cada frase, cada rosto. Lembrava das diversas vezes em que eu era zoado pelo tamanho dos meus peitos, pelo tamanho avantajado da minha cabeça, das vezes que saí chorando da sala, das vezes que peitei um valentão e não conseguia levantar após o primeiro murro. Como João, personagem de Diário da queda, não conseguia me desvencilhar das pessoas que me atazanaram, e quando achava que tudo tinha cessado, vinha a queda (figurativa, por favor), e todos olhando e rindo da minha cara. Assim como o personagem de Laub, mudei de colégio, e a virada começou. Não era mais zoado, era o “zoão”. A puberdade é traiçoeira.

Posso ser um pouco dramático quando escrevo. Mas deu para entender o quanto não gosto de lembrar de um período em que eu não gostava de mim mesmo porque parecia que os outros não gostavam? Apagar da memória.

O sentido de um fim, de Julian Barnes, tem como tema central as memórias frágeis e corrompidas do seu personagem principal, de como ele constrói uma verdade subjetiva dos acontecimentos de seu presente, consequências de decisões do passado. À época da leitura, falei das fraquejadas da minha memória para temas triviais e efêmeros. Esqueci esse assunto tão pronto publiquei o texto sobre o romance.

Ou quase.

Três meses depois, um ensaio de Oliver Sacks apareceu na Ilustríssima com o curioso título “Quando as lembranças nos pregam peças”. As reflexões de Sacks são para falar de autoplágio e de criatividade inconsciente vinda de uma memória subliminar. Existe um termo para isso, inclusive utilizado por Sacks no texto, chamado criptomnésia, que é uma lembrança adormecida, oculta ou subliminar que volta à tona e a qual as pessoas julgam ser nova e original. Imagine ler algo na sua infância e escrever um livro infantil quando você já é um adulto. Esse livro, a ideia dele, enredo ou personagens podem ser frutos de uma memória herdada que ficou oculta em grande parte da sua vida.

Desconfio de que esse tipo de esquecimento atinja a todos e que isso seja especialmente comum nas pessoas que escrevem, pintam ou compõem, pois a criatividade talvez exija tais esquecimentos para que nossas memórias e ideias possam renascer e ser vistas em novos contextos e perspectivas.

Há outro contexto no qual podemos aplicar a criptomnésia: memórias vívidas que na verdade não vivemos – entra aí o caso que melhor se aplica ao romance de Barnes (não confundir com déjà vu). Um exemplo ilustrativo famoso é caso de as pessoas falarem do episódio de Dragon Ball Z interrompido pela notícia da queda das Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. Apesar de muitos textos terem provado que não foi bem assim, você pode se deparar com as pessoas afirmando estarem na aula, fazendo uma prova, quase baterem o carro, etc.

Anos se passaram até que a turma daquele primeiro colégio marcasse um churrasco de confraternização de 10 anos de formados. Todos sabem como ocorrem esses reencontros com pessoas que não convivem diariamente: falam em demasia do passado, num eterno looping “Lembra aquela vez que…” esgotável proporcionalmente ao pão de alho. Em certo momento, o assunto era eu (não existencial, “eu, Felippe”) e como era terrível, mal-humorado e fechado com todos. Fui pego de surpresa; nunca tinha me enxergado daquela forma e não lembrava desses episódios de cólera – apenas quando provocado. Uma das meninas presentes afirmou gostar muito do meu bully, porque ele era o único “que conseguia se aproximar e baixar a sua guarda”.

De João caído no Bar Mitzvah, tornei-me Anthony Webster com sua memória falha. Não era tão inocente e inofensivo quanto lembrava, ou criara na minha mente. Por mais que me esforce para recordar os tais episódios de sangue quente, nenhuma imagem vem à mente. É como se estivesse reescrevendo a minha história e memória de forma obrigatória. A minha autoficção talvez fosse a maior ficção de todas, ou seria minha sentença quando uma das inspirações para os personagens batesse à porta pedindo retratação pelas mentiras que eu escrevi.  

Não sei se é por autopreservação ou filhadaputagem da cabeça de cada um, mas odiaria descobrir uma versão da história, da minha mesmo, em que cometi atos que julgava não ser capaz. Me pego a pensar se é assim que assassinos, daqueles que não recordam seus crimes, vivem.

Divaguei demais.

Melhor esquecer.

Vou esperar o dia que inventarem as lentes de recordação de The Entire History of You para me torturar com lembranças esquecidas.