Por Luisa Geisler (*)

– A gente não vai matar o cachorro de merda, Clara – meu pai diz.

Cachorro de Merda, nome e sobrenome. Assim se chamava o Quito pro meu pai. Isso desde sempre. Desde que minha mãe chegou com um filhotinho de rua, desde que o filhotinho chorou de noite sozinho, o Cachorro de Merda.

Não sei em que ordem começaram, sei que meu pai e o cachorro já se odiavam. Meu pai gritava com o Quito, a gente tinha que dar aquele bicho pra alguém, muito trabalho, muito trabalho, muito trabalho, não dava, a gente ia cuidar de outra criança, e aquele Cachorro de Merda era uma criança, caralho. Gastava demais, comida, tosa, banho, frescura da minha mãe, tudo falta do que fazer, tinha que dar pra alguém aquele Cachorro de Merda. O Quito tinha uma variante de ataque epilético quando meu pai passava pela sala. Mordia, rosnava, se atracava na perna, no chinelo, na pasta do trabalho.

– Tem que mandar matar – meu pai rosnava de volta –, Cachorro de Merda.

Minha mãe só abraçava o Quito. Organizava passeios, duas ou três ou quatro vezes ao dia. Sem contar que aninhava o cachorro pra dormir com ela na cama. Eu me acostumei a passar as vésperas de prova estudando com a trilha sonora de meu pai e minha mãe aos berros. Quando estudava pro vestibular, os rosnados e latidos do cachorro que não queria descer da cama se juntaram. Meu pai odiava qualquer despesa com veterinário, a caminha, o vermífugo, remédio, vacina. Quis o mais barato. Minha mãe sempre resolvia: menos produto de limpeza aqui, uma tosa higiênica. E os resmungos do meu pai, Cachorro de Merda, ecoando pela casa.

– Tem que mandar matar, o Cachorro de Merda.

Quito defendeu minha mãe com unhas e dentes. Houve momentos em que foi difícil tocar nela, dar um abraço, até mesmo chegar perto. Só piorou na época dos exames estranhos que o dermatologista pediu. E mais exames, e mais agressividade do cachorro. Durante a quimioterapia, a gente levava o Quito no carro. Meu pai ficava com ele lá.

Hospitais sempre foram um ponto de inflexão para o meu pai. Vai tudo muito bem, obrigado, alô, hospital, e, daí, se acabou meu pai. Mudava a concavidade, do gráfico, do sorriso. Meu pai e o cachorro no banco de trás.

Sempre que possível, Quito ficava com a mãe, queria ficar tão próximo, tão junto, tão dentro quanto o câncer, acho.  Brigava tanto que meu pai volta e meia precisou dormir no sofá.

Devagar, entre uma carona ao hospital e outra, fui assumindo Quito. Provas do terceiro semestre de Design do Produto e um cachorro que tinha que sair quatro vezes por dia.

– Tem que mandar matar esse Cachorro de Merda – meu pai nos dizia no carro. – Tu nem consegue estudar.

Quito só não foi ao velório porque o padre implicou: não implicava com a presença do cão, mas com a alegria.

Um advogado de divisão de bens, o projeto de trabalho de conclusão de curso e um cachorro que recebia o diagnóstico de cinomose.

– Tem que mandar matar – meu pai me disse logo que passamos a primeira tarde sem a mãe, sem responsabilidades de velório, sem advogado, sem roupas pra pôr fora. – Vai morrer logo. Ninguém mais gosta desse Cachorro de Merda, que nunca tinha que ter nascido.

Uma festa de formatura e um cachorro meio cego, que caminha arrastando as patas traseiras, que não tem energia pra brigar. Quito só ia aonde tinha gente. Ia se deitando lentamente (era um processo). Ficava.

Não quer morrer sozinho, acho.

Volta e meia, meu pai sentava no chão da varanda, comendo bergamotas, atirando as cascas no jardim fedendo a abandono. O Quito ao lado. Eu chegando do estágio-que-me-efetivou-tem-uns-dois-semestres e meu pai empurrando o Quito pra um canto da varanda:

– Cachorro de Merda. – E ali continuam. Ali. O Quito pela falta de capacidade de fazer qualquer outra coisa, meu pai pela falta de vontade de chutar o moribundo que não responderia.

Meu pai engoliu um gomo de uma vez só:

– Tá todo torto. Tem que mandar matar.

Uma vaga de emprego no Rio e meu pai estendendo roupa igual a minha mãe. O mesmo cheiro de amaciante barato-pra-poder-comprar-ração-premium-pro-Quito. O mesmo calor de sol que entra pela mesma janela da área de serviço desde que aquela janela é janela. Desde o câncer da mãe, meu pai decidiu que estenderia a roupa, com um olhar concentrado que me impedia de oferecer ajuda.

Fazia tempo que eu já lavava minhas roupas na casa do Felipe. O pai nunca notou, acho.

E entre uma cueca e outra, um colete amarrotado e outro, falei do Quito. Tinha envelhecido, nem conseguia comer direito. Nem dava pra levar na rua.

– Eu vou me mudar agora, pai, eu morando no Rio…

– A gente não vai matar o Cachorro de Merda, Clara – meu pai diz.

–Pai, quem vai cuidar dele?

Meu pai pega uma camiseta.

– Sabe que o cabide tem que ser de plástico? – ele ajeita a camisa pra estender. – Se for de metal, solta tinta.

– Pai, o Quito…

– Sua mãe que falava. – Meu pai estende o cabide no varal, pega mais uma camiseta. Começa a repetir o processo: – E reclamava de cabide de metal, alumínio… Usar grampo então, impossível.

Talvez seja surdez. Mais alto:

– Pai.

– Ela reclamava quando eu colocava coisa na frente dos anjinhos dela na estante, sabe? – Meu pai puxou uma calça da máquina de lavar. – Aquele monte de coisa juntando poeira e ela trazia mais, mais um, mais um. Vontade de quebrar todos.

Alguém tem que ser o adulto da casa.

– Pai – vejo meu pai me dar as costas –, tô pensando em levar o Quito na outra semana. O Felipe me recomendou um lugar.

 Ele começa a colocar a calça no varal, com grampos. Toco o ombro dele:

– Disse que não dói nada.

– Tem coisas que a gente lembra e tem coisas que a gente não esquece. – Meu pai ri: – Se teu namorado soubesse alguma coisa, não se mudava pro Rio contigo.

Vou falar mas ele–

– Tu sabe como eu sei isso tudo da tua mãe? – Ele para.

Suspiro.

– A gente não vai mandar matar o Cachorro de Merda, Clara. – Ele cata outra camiseta na máquina de lavar.

Outra hora, penso. Dou uns passos em direção à porta da área de serviço.

– A gente não vai mandar matar o Cachorro de Merda – meu pai diz. E começa a colocar a camiseta dentro de um cabide de plástico.


Luisa Geisler é escritora, tradutora e mestre em Processo Criativo pela National University of Ireland. Escreveu, entre outros, Luzes de emergência se acenderão automaticamente (Alfaguara, 2014), De espaços abandonados (Alfaguara, 2018) e Enfim, capivaras (Seguinte, 2019). Foi duas vezes finalista do Jabuti, duas vezes vencedora do Prêmio SESC de Literatura e vencedora do Prêmio Açorianos de Narrativa Longa e do APCA de Narrativa Infanto-Juvenil . Tem livros e textos traduzidos em mais de dez países. Participou de iniciativas artístico-literárias com a Serpentine Gallery de Londres, o OMI Arts Center de Nova York, Hans Ulrich Obrist e o MALBA. Nasceu em Canoas (RS) em 1991.