Você está disperso e não engata na leitura daquele livro antes empilhado e empoeirado? Temos alguns contos para indicar para ler enquanto não se decide o que cozinhar. Confira a primeira parte das nossas recomendações:
Taize Odelli
“Inventário”, de Carmen Maria Machado, em O corpo dela e outras farras: esse é o conto perfeito para ler nesse momento. Uma mulher faz um inventário de todos os relacionamentos sexuais e amorosos que já teve, da infância até o presente. Mas, enquanto lista esses encontros, ela acompanha também o avanço de uma pandemia pelos EUA. Conforme se isola mais, mais se lembra das pessoas que já perdeu para esse vírus. Gostei muito desse conto por tratar de uma maneira até então “fantasiosa” para falar de encontros casuais e relacionamentos sérios. Mas, agora, o conto é mais real do que nunca.
“Saudades: um estudo de cartas escritas por alunos de uma classe do quarto ano primário desejando melhoras a um colega”, de Lydia Davis, em Tipos de perturbação: “O presente estudo trata de vinte e sete cartas escritas por alunos de uma classe do quarto ano primário para seu colega Stephen, quando este esteve internado recuperando-se de uma grave osteomielite.” É assim que começa um dos contos longos de Lydia Davis nesse livro. A professora analisa todos os discursos da carta, transformando a linguagem simples e direta das crianças em grandes reflexões. Através dessas análises, vemos como o isolamento de um colega afeta o cotidiano de todas elas. É bem-humorado e lindíssimo.
“Semplica Girls – os diários”, de George Saunders, em Dez de dezembro: Outro conto em estilo “diário” dos membros uma família de classe média que quer parecer rica. Vendo os jardins dos vizinhos e de colegas, os carros que têm e as casas, eles se preocupam com não poderem apresentar o mesmo nível de riqueza. Ao ganhar um dinheiro numa raspadinha, repaginam o jardim com o que há de mais “chique” no mercado: um arranjo de Semplica Girls, mulheres que ficam paradas como estátuas, fazendo nada. A aquisição desses “enfeites” começa a trazer efeitos para a família: a filha mais nova recebe as SGs com horror e não entende os motivos dos pais quererem isso. O valor cobrado pela empresa de paisagismo é muito além do combinado. O pai vai, então, descrevendo o colapso financeiro e familiar. É um conto bem estranho, posso dizer, mas reflete tanto o cidadão médio, mas tanto…
Felippe Cordeiro
“A rua dos crocodilos”, de Bruno Schulz: Não é exatamente uma rua, e sim uma cidade. Olhando atentamente a falta de detalhes, é uma cidade fantasma surgida de um rascunho acidental. Ao analisar os parcos detalhes, o jovem narrador surge no centro da rua dos Crocodilos: prédios com aparência de papel, vidraças quebradas e cinzentas, arquitetadas – por simples apuro do destino – para combinarem com um céu encardido e poeirento. A cidade abriga tipos que combinam com suas paisagens taciturnas. Seriam vítimas de uma negligência da seleção natural ou vítimas de um pós-guerra não mencionado? Ou de um sistema político corrompido?
“Carta a uma Srta. em Paris”, de Julio Cortázar: a Páscoa está logo aí, o primeiro feriado em meio a quarentena. O coelho da Páscoa deve estar de folga (se o Papai Noel mora no Polo Norte, onde mora o Leporidae pascoal?). Volta a indicar o conto de Julio Cortázar, que é um manifesto para não comprar e nem adotar coelhos, mas vomitá-los. Dois dedos na garganta para vomitar um, puxe as orelhas e pronto. Coloque tela nas suas janelas, porque eles podem vir em dúzias e pularem do parapeito.
“A galinha degolada”, de Horacio Quiroga: De quem é a culpa por filhos ficarem idiotas: o pai ou a mãe? E se não for pela criação, mas por algo genético e inevitável? Pode parecer uma sátira, porém é um conto mais taciturno do que aparenta pela descrição. Esteja avisado.
Daniel Falkemback
Minha primeira sugestão é “Venha ver o pôr do sol”, que encerra o livro Antes do baile verde, de 1970, da Lygia Fagundes Telles. É uma opção boa para quem não tem o hábito de ler contos e quer logo ser conquistado por esse formato. Acho que ele é um exemplo ótimo de como numa pequena extensão uma história pode ter uma reviravolta que muda nossa visão das personagens, do contexto, do espaço, enfim, de toda a ideia de mundo que se desenvolve ali. Se Raquel, uma das personagens, no início parece detestável, dá para se compadecer dela no final, por motivos que não vou expor aqui para não estragar a história. Por causa dessa mudança na percepção, também é bom reler o conto, para podermos ver como o fim, de certo modo, já era adiantado por pequenos detalhes.
Uma outra sugestão também é brasileira, “Nem mesmo um anjo é entrevisto no terror”, que integra o livro Que os mortos enterrem seus mortos, de 1981, do Samuel Rawet. Também está numa edição mais recente da obra do autor, Contos e novelas reunidos, de 2004. De início, já é marcante como o título se torna a primeira frase do conto e, depois, sua última frase também. Essa noção de circularidade coincide com as idas e vindas em volta do Passeio Público no Rio de Janeiro, espaço no qual se passa a narrativa. A ambientação nebulosa e noturna, com homens que se entreolham tentando adivinhar os próximos movimentos, é muito característica da pegação nas ruas, do cruising. Acredito que é um conto que vai além do formato mais clássico do gênero e propõe quase uma falta de ação de figuras que quase não são personagens.
E a última é “Teorema”, conto do português Herberto Helder que faz parte de Os passos em volta, de 1963. O título do conto, que faz referência à afirmação matemática e ao processo de verificação de sua verdade, já aponta um caminho de leitura, que reconta uma história famosa do imaginário português: um suposto assassino de D. Inês de Castro, amante de D. Pedro I de Portugal, aceita sua morte na forca. As razões para essa morte são expostas pelo narrador em primeira pessoa e também em terceira pessoa, provando-se, assim, a necessidade de sua própria sentença. Em paralelo, seu executor, D. Pedro I, parece instável, ora muito altivo, ora degradante, mas ainda assim digno de seu posto. O assassinato de sua amante é, ao mesmo tempo, uma comprovação de seu estatuto de rei e de sua tristeza enquanto homem. Pela narrativa, pelo conto, prova-se, de certa maneira, não o amor, mas a morte como fim.
Arthur Tertuliano (Tuca)
O que gosto do Kindle Unlimited é a possibilidade de matar a saudade de um autor enquanto ele não lança coisa nova e de conhecer uma amostrinha de um novo escritor, com potencial de virar favorito.
“Sabor da maré”, de Eric Novello, autor de Exorcismos, amores e uma dose de blues e Ninguém nasce herói: se você quer fantasia urbana da boa, com universo bem construído e escrita amarradinho, o Eric é o cara. Falei “se”, mas é claro que você quer. Nesse conto, a gente acompanha um passeio de Diana com suas memórias e um encontro fantástico. Além dos acenos a obras anteriores do Eric, o conto empolga pelo que prenuncia de seu próximo romance.
“Escrito em algum lugar”, de Vitor Martins, autor de Quinze dias e Um milhão de finais felizes: Vitor é para quem quer aquela coisa gostosinha de ler alguém que fala como a gente, divertido como conversar com os migos no Twitter. Aqui a narrativa é sobre um amor de fila de ingresso de show de boyband. Será que eles vão se reencontrar? Será que a gente ainda vai sofrer muito até Fred & Fred, seu novo livro, chegar às livrarias?
“O primo de Aziz”, de Seane Melo, autora de Digo te amo para todos que me fodem bem: Seane é a primeira pessoa em que penso quando falo em romance. Suas histórias parecem um tratado sobre os relacionamentos contemporâneos, em todas as suas facetas, incluindo a erótica. Nesse conto, a mesma história é recontada de três formas levemente diferentes, e o leitor é levado a decidir sozinho o que rolou naquele quarto.
Dica bônus: “A feiticeira de São Judas Tadeu dos Milagres”, de Isa Prospero. Li rapidinho, depois que todo a minha TL do Twitter elogiou e, poxa, que história bem amarradinha, cheia de subversões de estereótipos. Se você, como eu, gosta de representatividade em uma trama cativante, esse conto é pra você. (Não é só isso da “representatividade”, você leu a parte da “trama cativante”, né? Pois bem.)
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