Um Festival que quase não aconteceu, esse foi o slogan informal da 21ª edição do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, realizada entre os dias 9 e 19 de dezembro, e que exibiu mais de cem filmes estrangeiros e 91 nacionais, além de curta-metragens e encontros de mercado. Ameaçado pelo corte de verbas da municipalidade carioca, (mal) gerido pelo prefeito Marcelo Crivella (Rep.-RJ) e pelo encolhimento do apoio das empresas estatais a partir de novas diretrizes do governo federal, um dos festivais de cinema mais tradicionais do país enfrentou a mesma crise que vem afetando toda a produção cultural brasileira. Felizmente, tal como o Flamengo na Libertadores, a tríade de craques produtoras Ilda Santiago, Walkíria Barbosa e Vilma Lustosa viraram o jogo nos instantes finais. O Festival mais uma vez aconteceu, resistindo a um assombroso 2019 em termos de gestão pública, graças ao engajamento da comunidade cinéfila via campanhas de arrecadação coletivas, às produtoras e distribuidoras parceiras e aos mais de 500 voluntários do evento.

O esforço para vencer tamanha crise teve, como ocasiões do tipo por vezes revelam, papel redentor aos profissionais e fãs do cinema, fazendo um dos festivais mais políticos e engajados dos últimos anos. Talvez daí nasça algo de novo no nosso audiovisual. A resistência, o desejo e a paixão pelos filmes se evidenciaram pela seleção das obras exibidas, por seus conteúdos, nas falas dos realizadores ao longo dos debates e sobretudo na sessão de encerramento e premiação, realizada no Museu do Amanhã, espaço cultural que também correu o risco de fechamento nesse ano pelo corte de verbas da prefeitura.

Resistência em cima de resistência, a redenção de um cinema combativo, independente, de guerrilha ou da gambiarra foi tanta que o Troféu Redentor, entregue pelo Festival às melhores produções pelo voto do público e do júri, não poderia ter nome mais adequado. As premiadas e os premiados, em grande medida, também representavam os sinais inevitáveis dos novos tempos: a justa e necessária demanda por maior espaço a mulheres, gays, lésbicas, transexuais, negros, nordestinos e tantas outras minorias tantas vezes excluídas da representação audiovisual (e de tantas outras instâncias). Assim, o prêmio de melhor atriz foi para Regina Casé, por Três verões, de Sandra Kogut, e o de melhor ator foi para o ótimo Fabrício Boliveira, por Breve miragem do sol, de Eryk Rocha. Já os prêmios de melhores documentários foram para Favela é moda (Voto do Público), de Emílio Domingues, sobre os estilos da favela a partir de uma agência de moda localizada na comunidade do Jacarezinho, Rio de Janeiro; e Ressaca, de Vicent Rimbaux e Patrizia Landi, levando o Prêmio do Júri da categoria com um lindo longa em preto e branco sobre a resistência (olha ela aí mais uma vez) do corpo artístico do Theatro Municipal carioca diante dos atrasos dos salários em 2017. Na categoria longa-metragem de ficção, pelo voto popular venceu M8 – Quando a morte socorre a vida, do realizador negro Jeferson De; já o prêmio do Júri foi conquistado por Fim de festa, do pernambucano Hilton Lacerda, que também levou o prêmio de melhor diretor (na imagem em destaque, olha eu aí sorrindo à esquerda da foto da comemoração de Hilton e sua equipe).

Para os fãs de cinema e de um esporte de combate, foi uma alegria ainda mais especial testemunhar a realização de mais um Festival do Rio, o oitavo de que participo, em clima de luta em defesa da cultura, das artes, da poesia audiovisual, enfim, das diferentes formas de ser e de se expressar. É um orgulho ver uma sociedade engajada e combativa, que faz a festa à sua maneira, com os recursos de que dispõe. Que esse Fim da festa, de Hilton Lacerda, que encerrou essa edição levando o principal prêmio do Festival, prenuncie celebrações ainda maiores ao cinema brasileiro.

A seguir, uma seleção de comentários e recomendações de alguns dos filmes vistos esse no Festival:

Documentários nacionais

Muitos filmes desse gênero este ano tiveram um caráter marcadamente político, fato que me obrigou a ver seguida vezes em tela grande a cara do nosso atual presidente da República. Ossos do ofício. É meu gênero favorito em festivais, sempre trazendo produções independentes ou realizadas em condições adversas e que infelizmente não terão uma temporada em cartaz nos cinemas. Esse, portanto, é o único momento para conferir muitos desses filmes, sobretudo com a presença de diretores e da equipe técnica.

Meus destaques aqui vão para Espero tua (re)volta, de Eliza Capai  e Chão, de Camila Freitas, vencedor do Prêmio Especial do Júri na mostra Novos Rumos. O primeiro acompanha a luta dos estudantes secundaristas, sobretudo em São Paulo, entre os anos de 2013 e 2017. A linguagem dinâmica e o recorte temporal servem de análise audiovisual de alguns processos políticos que o Brasil vêm vivendo nos últimos anos, tal como o documentário nacional indicado ao Oscar Democracia em vertigem (2019), de Petra Costa, mas pelo viés dos estudantes da rede pública. São adolescentes sonhando com um futuro digno e uma realidade melhor que se expuseram ao trauma de enfrentar a polícia, a política e a opinião pública em defesa e uma educação de qualidade. Violência do estado e o papel das mulheres na luta política contemporânea também são retratados, a partir de um grupo de jovens protagonistas que dividem a narrativa de forma divertida dinâmica.

Chão, da imagem acima, é uma realização esforçada de uma equipe que parece ter acampado junto aos agricultores do MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Goiás. Revelando o dia a dia dessas pessoas, das estratégias de ocupação das terras improdutivas até as decisões de cultivo e manejo, a diretora Camila Freitas e sua equipe parecem ter se arriscado em algumas ocasiões para acompanhar processos de luta dos trabalhadores rurais, que muitas vezes envolvem conflitos com as autoridades e embates com a força policial. O que se tem é um retrato único desse contexto, uma realidade difícil de encarar em um país tão vasto e geograficamente rico.

Outras recomendações: Sem descanso, de Bernad Attal; O paradoxo da democracia, de Belisário França; e Nossa bandeira jamais será vermelha, de Pablo López Guelli.

Ficções nacionais

As ficções brasileiras, em curta e longa-metragem, trouxeram mais uma vez produções dos mais variados tipos, porém sem boa parte dos recursos (que nunca foram suficientes) de anos anteriores. Por isso, tivemos filmes menores, ainda que não piores, e alguns destaques que valem ser mencionados novamente são os premiados Breve miragem do sol, em que Fabrício Boliveira interpreta um motorista de aplicativo que trabalha durante a madrugada no Rio de Janeiro, e Três verões, de Sandra Kogut, que traz Regina Casé e é um retrato familiar da derrocada do Brasil nos últimos anos.

Um destaque negativo, porém, foi o desinteressante Macabro, de Marcos Prado, que parece ter buscado, sem sucesso, ser um terror psicológico centrado no caso real dos assassinatos de mulheres ocorridos na Serra dos Órgãos, região de nova Friburgo, no Rio de Janeiro nos anos 90. Mesmo a boa fotografia e localizações impressionantes não fazem com que os personagens convençam nem que as interpretações se sobressaiam.

Outro destaque é o curta Copacabana Madureira, de Leonardo Martinelli, da imagem acima, que brinca com diferentes estéticas em meio a desigualdade entre a zona sul e o subúrbio cariocas. 

Panorama internacional

Outro grande prazer desses festivais é poder ver, um pouquinho antes da hora, alguns filmes estrangeiros que ainda serão distribuídos no Brasil. Algumas vezes ainda, poder ver filmes independentes que nunca terão distribuição no país, ou apenas numa sala de arte soturna com um horário disponível a tarde e no meio da semana. Foi assim que vi O jovem Ahmed, mais uma narrativa sensível e contemporânea dos irmãos Dardenne, e ainda Uma mulher alta (imagem acima), de Kantemir Balagov, livre adaptação do livro A guerra não tem rosto de mulher, da escritora bielorussa vencedora do Nobel de Literatura Svetlana Aleksíevich e que representou a Rússia na disputa por uma vaga ao Oscar desse ano.

Outros destaques: O traidor, sobre o mafioso Tommaso Buscetta que veio morar no Brasil e se tornou delator, com uma boa atuação de Maria Fernanda Cândido; O farol, de Robert Eggers, um clássico cult contemporâneo, iconoclasta por seu uso do preto e branco e pelas técnicas de filmagem e ricamente inspirado em mitologias marítimas; Os mortos não morrem, uma decepção de Jim Jarmusch com um elenco tão estrelado (Bill Murray, Tilda Swinton, Adam Driver…). Por fim, Retrato de uma jovem em chamas, de Céline Sciamma, que merece um texto só pra si.


Vinicius Volcof é cientista social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, atualmente cursa mestrado em Sociologia e Antropologia pela mesma instituição. Busca interfaces entre a pesquisa teórica e a produção artística, através de textos, fotos e vídeos. Pode ser lido no Cinema com Rapadura: https://cinemacomrapadura.com.br/cat/criticas/.