Por Leonardo Villa-Forte (*)

Antes do mundo acabar, o personagem P., do seriado Morrendo em Los Angeles, diz à sua esposa que a ama muito e que deseja ser carbonizado ao lado dela, de modo que seus esqueletos, em certo dia longínquo, sejam encontrados juntos. “Quem sabe até confundam minha costela com a sua”, P. diz a M.

Antes do mundo acabar, um avião cai na península mexicana de Yucatán, matando sessenta e três pessoas, inclusive uma criança de nome Arthur. Jornalistas lembram que há sessenta e cinco milhões de anos foi exatamente ali que caiu um fragmento do Baptistina, enorme meteoro que, após chocar-se contra outro, estilhaçou-se lançando suas partes pelo espaço. Um desses fragmentos teria provocado a extinção em massa dos dinossauros.

Antes do mundo acabar, ouço que o corpo humano está obsoleto. O australiano Stelarc apresenta como obra artística uma orelha implantada em seu braço. Por meio de microfones minúsculos instalados nessa orelha, poderemos escutar pela internet todo e qualquer som emitido próximo ao braço de Stelarc.

Antes do mundo acabar, apaixono-me.

Antes do mundo acabar, o astrônomo suíço Herkloff diz que o Baptistina não foi responsável pela extinção dos dinossauros: “Estamos buscando traçar a árvore do asteroide responsável, mas podemos dizer hoje que não é da família do Baptistina.”

Antes do mundo acabar, uma cratera se abre inexplicavelmente no centro do Rio de Janeiro. Trinta e nove pessoas desaparecem. Os bombeiros descem às fundações da cidade e buscam as razões para o fenômeno. Apesar da jornada de dois meses e meio, não conseguem encontrar uma explicação plausível, somente os cadáveres. “O desgaste e a deterioração do asfalto, bem como da calçada e das tubulações de água e esgoto, não são o suficiente para causar um buraco deste tamanho com tamanha velocidade”, dizem as autoridades, admitindo, ao menos, o desgaste e a deterioração. Em uma declaração espantosa, o prefeito diz que o mais provável é que a cratera tenha sido um “acidente espontâneo”.

Antes do mundo acabar, minha avó entra em um hospital com a bacia fraturada. O tratamento indicado é repouso. Nos dias seguintes, ela contrai pneumonia, infecção hospitalar e não sai de lá viva.

Antes do mundo acabar, preciso decidir se me caso ou não.

Antes do mundo acabar, vejo um documentário onde animais se digladiam usando patas e dentes. Invariavelmente, o mais forte abate o mais fraco. Há algo positivo nas armas de fogo, penso pela primeira vez.

Antes do mundo acabar, o cineasta Lars Von Trier cria um fim de mundo para a Terra em Melancolia. O cineasta diz que é um filme romântico, concebido sob particular influência do romantismo alemão.

Antes do mundo acabar, o primeiro transplante facial considerado bem-sucedido começa a dar errado. I.D., cidadã francesa que havia recebido um novo nariz, um novo queixo e novos lábios, vê no espelho sua face se locomover ao tocá-la. A região facial abaixo dos seus olhos adquire o aspecto de uma massa de modelar perfeitamente manipulável. O nariz, por exemplo, ao ser ajeitado por uma simples mão humana, pode ser posto um pouco mais à esquerda ou à direita; mais arrebitado ou achatado, com narinas mais largas ou finas. Os cirurgiões franceses que a operaram trabalham no caso para dar novamente à I.D. um rosto rijo e fixo. Mas especialistas americanos veem no “erro” uma possibilidade para a medicina. “Imaginem que, ao viajarmos para um local muito acima do nível do mar, onde o oxigênio rareia, pudéssemos alargar nossas narinas. Quem não gostaria de, com um simples toque, melhorar sua capacidade de respiração?”, diz o cirurgião Robert Mayer, anunciando que sua equipe já está pesquisando como os franceses chegaram a esse “erro maravilhoso que gera novas possibilidade de intervenção para o aperfeiçoamento do corpo humano”.

Antes do mundo acabar, mandarei um beijo para Lara, arara que falava meu nome durante as primeiras férias na Bahia.

“Acabou”, penso, antes do mundo acabar, segurando-me à cadeira em um voo violentamente turbulento entre São Paulo e Guadalajara, no México. Estava com minha esposa, e eu lhe dizia: “Está tudo bem.” Viajávamos para visitar seus pais.

Antes do mundo acabar, o metro quadrado atinge seu preço mais elevado em toda a história da civilização humana. Muitos não podem pagar e terão de morrer em local público.

Antes do mundo acabar, minha esposa diz que precisamos ter um filho, antes que o mundo acabe.

Antes do mundo acabar, o projeto “Homens em Marte” é cancelado. Uma crise econômica obriga o presidente norte-americano a cancelar as pesquisas para exploração e habitação do chamado planeta vermelho. “Teremos que aprender a viver aqui mesmo”, diz o presidente, na ocasião do seu pronunciamento.

“Desse ano não passa. Faça suas preces.”, dizem-me, antes do mundo acabar. Lembro de estar em débito com as ave-marias recomendadas pelo padre em minha confissão para a primeira eucaristia.

Antes do mundo acabar, passo a precisar de um objeto sempre em minhas mãos. “Tenho medo de não existir”, digo à minha mulher, no que ela puxa um vaso que eu segurava. “Tenho medo de ser ilusão”, repito quando ela me arranca um pente. Então eu me agarro a ela, me agarro ao seu braço, à sua perna, mas ela se afasta. Procuro por um papel de embrulho, uma caneta, um chinelo, algo tangível, que eu possa não só ver, mas tocar, ouvir, cheirar, fazer barulho. “Não quero mais meus olhos, não quero ver, satisfaço-me com os dedos”, digo. Ela retira de casa quase tudo que é pontudo. Adentramos uma época difícil, durante a qual não pregamos quadros, não anotamos recados, trocamos a fechadura por uma especial, e eu só me alimento sob sua supervisão.

Antes do meu casamento acabar, batizamos Arthur.

“Há coisas sem explicação, você tem que aceitá-las”, ouço, repetidas vezes, de pessoas diferentes, antes do mundo acabar.

Antes do mundo acabar, ando uma única vez em uma montanha russa. Ao lado do meu pai, tremo de medo. Digo: “muito medo, pai”. Ele treme como eu, morre de medo como eu, mas permanece quieto.

Antes do mundo acabar, cientistas dizem que aves, como Lara — um beijo, Lara, querida arara falante —, são parentes diretos dos dinossauros. “Os dinossauros”, diz o Dr. Marlowe, “nunca nos deixaram. Os terrestres foram extintos pelo aquecimento e pela posterior combustão causada pelo meteoro, mas os pequenos animais da água e do ar tiveram sorte melhor. Certos recônditos dos oceanos não foram tão afetados, assim como localidades altíssimas. Os animais que, por sua constituição natural, apresentavam a limitação de só conseguirem viver nesses ambientes acabaram sobrevivendo e se reproduzindo. Podemos dizer que os terrestres foram vítimas de sua própria capacidade de adaptação.”

Antes de Arthur morrer, eu não sabia que era feliz.

Antes do mundo acabar, atiro-me da varanda para a piscina do meu prédio. A água me lembrara líquido amniótico. Sinto saudades da minha mãe. Não morri.


Leonardo Villa-Forte é autor dos livros Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI (Menção Honrosa Prêmio Casa de Las Américas 2020), O princípio de ver histórias em todo lugar, Agenda e O explicador. Criou a série de intervenções urbanas Paginário e o blog MixLit – O DJ da Literatura. Nasceu em 1985 no Rio de Janeiro. “Notícias de antes do fim” foi originalmente publicado no seu livro de estreia pela Editora Oito e Meio, em 2014.