Jacobsen

Dando continuidade a nova seção A famigerada de lista de…, que começou com a lista de Braulio Tavares, temos a participação do gaúcho Rafael Bán Jacobsen – Físico da UFRGS e escritor. É autor dos livros Tempos & costumes (Prêmio Açorianos de Destaque em Narrativa Longa / 1998), Solenar (vencedor do Prêmio Açorianos / 2006) e Uma leve simetria (finalista do Prêmio Açorianos / 2009 e do Prêmio Livro do Ano da Associação Gaúcha de Escritores / 2010). Seu novo romance, Imemorial das pedras, ainda inédito, foi contemplado com a Bolsa Funarte de Criação Literária em 2010.

Nessa primeira lista de duas, Rafael montou seu Top 5 de livros clássicos na sua opinião.

5. A Paixão Segundo G.H. (Clarice Lispector)

O pináculo da obra da esfinge Lispector é um eloquente exemplo da máxima schopenhaueriana de que “as obras mais elevadas se contentam com um mínimo de ação”: trata de uma mulher que, ao limpar um armário antigo, depara com uma barata e, após espremê-la na porta do móvel, decide comê-la porque intui que, nesse ato, haverá uma epifania, uma grande libertação. E come. E há libertação. Fim. O que importa aqui é a belíssima e desesperada luta de Clarice com as palavras, para arrancar delas sua máxima potência, insuficientes que são para apreender o mundo, agarrar as coisas, especialmente as verdades mais sutis, as revelações únicas de cada ser humano, os instantes de clarividência e seus turbilhões. O resultado? Mais de uma centena e meia de páginas de prosa extática, um arrepio a cada frase, um transe literário que suspira e soluça, encharcado de fúria psicológica e religiosidade levítica. Uma das experiências de leitura mais perturbadoras que alguém pode ter. Para quem ainda reluta em se entregar à obra de Clarice, basta lembrar que o chatarrão, raso e boboca Henfil chegou a “enterrá-la” no “Cemitério dos Mortos-Vivos” do “Pasquim”, como fazia com todas as personalidades que julgava alienadas e descomprometidas com as causas políticas da época – e isso só pode ser um excelente indício!

4. Ulisses (James Joyce)

SIM porque há muito proveito em acompanhar um dia de idas e vindas pelas ruas de Dublin na vida deste judeu execroso chamado Leopold Bloom tão humano quanto Odisseu a ponto de ser a metempsicose do guerreiro de Ítaca separado apenas pelo fato de Cronos ter arrotado uns poucos milênios entre um e outro e pelo narrador que as musas caolhas escolheram para cantar a desaventura de cada um sendo o primeiro um poeta épico que nem existiu e o segundo um irlandês beberrão que andava lucidamente embriagado mesmo quando sóbrio a ponto de juntar um vocabulário de mais de trinta mil palavras para fundir e amarrar o mitomen passado com esse passeante vendedor de anúncios apelando às técnicas narrativas mais variadas desde a prosa traidoradicional passando pelas vinhetas pelos temas musicais pelo script teatral pelas perguntas e respostas pelo fluxo de consciência desancorado e que assim quebra-cabeçando o romance escancrachou as fronteiras do podenãopode literário e por tudo isso eu pegaria o calhamaço todo sim a ansiedade de sorver tanta loucura e sim eu digo sim eu leria sim.

3. Memórias de Adriano (Marguerite Yourcenar)

Essa autobiografia imaginária do imperador Adriano consumiu trinta anos de pesquisas, escritas e reescritas – período de quase uma vida para dar conta de recriar uma vida em que tudo cabe. No livro, que apresenta umas das mais minuciosas e vívidas reconstituições históricas já feitas na história de literatura, o imperador Adriano, ele próprio, vagueia pelas suas memórias, da infância à velhice, narrando as suas viagens pelo Império, as intrigas de sua corte, as suas investidas militares, os seus sentimentos para com amigos e inimigos, os seus pensamentos políticos e filosóficos sobre Roma e seus cidadãos, sobre os povos da Ásia Menor e do Egito, sobre os bárbaros do Norte, sobre os judeus, e, acima de tudo, a sua paixão pelo jovem Antínoo, tão plena quanto dilacerante. Há quem viva “para fora” (baseando-se em ações, em fatos, nas relações com as outras pessoas); há quem viva “para dentro” (pautando-se em reflexões, no autoconhecimento, na análise subjetiva das coisas do mundo). O Adriano de Yourcenar viveu das duas formas – e muito. Um livro para se ler de joelhos, porque poucos viveram como Adriano (e porque poucos escrevem com a sofisticação de Yourcenar).

2. Grande Sertão: Veredas (Guimarães Rosa)

O único romance escrito pelo mago de Cordisburgo é uma longa pergunta de 600 páginas, um monólogo metafísico através do qual o velho fazendeiro Riobaldo rememora sua vida, especialmente o período em que lutou na jagunçagem e viveu um amor quase secreto e platônico com Diadorim, seu companheiro de bando. É uma obra de arte que, de modo singular, se apoia nos paradoxos, extraindo deles a sua coerência interna: o ambiente do sertão, com seus usos e costumes, é suporte para uma ambiência repleta de dilemas universais (no livro de Rosa, referências herméticas e paragens mágicas estão semiocultas pela cor regionalista, ou, como diria a poeta e tradutora Dora Ferreira da Silva, o “Grande Sertão” é um romance teológico no qual “o pitoresco de buritis e capim, o raso do Sussuarão, camuflam a ida infinita de Platão a Cristo”); a linguagem combina a oralidade da fala do interior mineiro com a erudição de arcaísmos, estrangeirismos e neologismos formados por elementos de diferentes idiomas; a aguda modernidade da prosa, já dizia Alfredo Bosi, nutre-se de tradições, “as mesmas que davam à gesta dos cavaleiros medievais a aura do convívio com o sagrado e o demoníaco”; Diadorim é homem e é mulher; o Liso do Sussuarão é intransponível e transponível; o Diabo existe e não existe. E, no embate grandiloquente entre tantos contrastes, surge um livro que é completo e maior que o próprio mundo. É esta a razão para lê-lo: porque nenhum outro livro possui tantas veredas, tantos percursos de leitura possíveis. Uma vez aceito o desafio e terminada a travessia, há de se concordar que existem dois tipos de leitores para o “Grande Sertão”: quem nunca o leu e quem não conseguiu ler só uma vez.

1. Em Busca do Tempo Perdido (Marcel Proust)

Trata-se de uma criação hercúlea que, como poucas na literatura, materializa, em seus sete copiosos volumes, o drama que é a peleja de um escritor para vencer a morte através da escrita, tanto concreta quanto metaforicamente; por um lado, de fato, Marcel Proust, em seus últimos anos, consciente de sua frágil saúde e da grandiosidade da obra que tinha em mente, enclausurou-se em seu quarto com paredes forradas de cortiça para trabalhar ininterruptamente na conclusão da saga que iniciara cerca de dez anos antes, acabando por morrer pouco depois de colocar nela o ponto final, cercado, no leito, pelas incontáveis folhas cobertas de texto que ainda revisava; por outro lado, no plano simbólico, com suas cerca de quatro mil páginas e duas mil personagens (a galeria de seres de papel e tinta mais rica fora da dramaturgia de Shakespeare), o romance que Proust concebeu é um monumento à memória, ao resgate de tudo que fluiu no rio da vida, desde as coisas mais ínfimas – cada uma das folhas secas carregadas pelas águas, ou seja, os acontecimentos cotidianos (como a espera por um beijo da mãe antes de dormir, uma visita empolgante a uma catedral gótica, o prazer aéreo de embriagar-se pela primeira vez com vinho do Porto) – até os principais acidentes da topografia de seu leito, o leito do rio da vida, que condicionam a velocidade e o rumo de seu fluxo – isto é, as principais angústias e temas que obcecam o narrador e moldam sua existência (como a concretude das lembranças, a paradoxal “maleabilidade tirânica” do tempo, o amor enquanto construção psíquica, o ciúmes oteliano, a ansiedade das separações, a natureza da arte e a homossexualidade reprimida) –, tudo isso brotando em episódios hipermnemônicos, deflagrados por experiências sensoriais únicas, como na famosa cena em que o narrador come uma madeleine molhada no chá e vê sua consciência mergulhar involuntariamente no passado, e narrado em frases longas, sinuosas, torrenciais, em parágrafos de três, quatro, às vezes cinco páginas, nos quais o tema pode ser o mais prosaico, mas que Proust, na alquimia do seu estilo, consegue transmutar em algo arrebatador: ouro a partir de mercúrio. [P.S.: A (única) frase anterior pode ser considerada semiproustiana.]