Thiago Souza de Souza é formado em jornalismo pela Famecos/PUCRS e fez parte da turma de 2013 da oficina de criação literária coordenada por Assis Brasil também na PUCRS. Jamais serei seu filho e você sempre será meu pai é o seu primeiro romance, e ele espera vê-lo publicado um dia.

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1.

Para ele, ela é quem deve falar. Poderia começar explicando o que a levou a aplicar o medicamento no pai dele: um médico o prescreveu mas ela não leu no prontuário o aviso sobre a alergia?, se leu, o que a levou a ignorá-lo?, por que não questionou o médico, a chefe da equipe de enfermeiras, o diretor do hospital, sua própria consciência? Ele também queria saber como o pai reagiu à dipirona, que palavras usou para comunicar o mal-estar, se gritou algum pedido de socorro, em que careta o rosto dele se transformou, se deu tempo de ele chorar, será que ele percebeu

A sessão que ele e Gustavo reservaram para o encontro começa daqui a pouco, ele está pronto para ouvir tudo da boca dela. Ela vem aqui para falar e é quem deve começar a narrar esta história que por muito tempo só restou a ele imaginar, esta história que, contada por ela, vai ganhar o carimbo da verdade. 

Hoje ele vai preferir o silêncio. Ele tem o que dizer, mas ainda não. Daqui a pouco.

A campainha da sala do Dr. Gustavo toca cinco minutos depois do horário combinado. É ela, a enfermeira. Lembra o que estamos buscando com isso, Gustavo o adverte. Depois bate com as palmas das mãos nas coxas e levanta da poltrona. Para diante da porta, olha para ele e sentencia: o importante é completar o que está faltando, procurar dar algum sentido, o sentido de fechamento que você procura, e não provocar mais culpa, ninguém precisa carregar mais culpa. 

Ela entra, ele limpa a garganta. Fica em pé, oferece a mão à mulher, vai dizer “muito prazer” mas se dá conta a tempo, e hoje ele prefere o silêncio. O terapeuta indica a ela o sofá e volta à poltrona. Ele vai ficar quieto, a palavra é toda dela. Ela vai começar, mas isto aqui é o fim. A voz dela vai aparecer, sim, mas no final, porque é quando esta história, ele acha, já poderá enfim acabar.

2.

O começo é a morte. Numa tarde de fevereiro de 1993, a morte do pai dele dá início à história que a mulher se dispôs, gentilmente, a contar. Um medicamento para dor – a vida tem dessas, ele costuma pensar: um medicamento para dor, para atenuar a dor, é o que tinge a existência dele de dor. Que ideia brega, mas não escapamos de nada. Como a ação para evitar alguma coisa se transforma justamente naquilo que se tentava evitar? Acontecia com ele, e não era raro. 

Quando começa ele tem três anos, é a idade que ele vai se habituar a dizer que tinha quando aconteceu, não sem fazer certo esforço para esconder uma pontada incômoda que a princípio lhe parece apenas constrangimento, mas que se revela uma mágoa: três anos, tinha de ser tão cedo?, eu posso falar com alguma autoridade sobre perder um pai numa idade que não me permite lembrar como é ter um pai?

Num casebre de madeira na zona sul de Porto Alegre, bairro Vila Nova, nos fundos de um pátio comprido e dividido em partes iguais entre todos os irmãos do pai, eles – a mãe, a irmã e ele – vão ter de começar a tentar viver depois do que aconteceu, depois que o remédio para dor fez efeito: no corpo do pai, na vida deles. Um corpo magro, um vício em álcool e em nicotina, talvez em jogos também, uma trombose, um marido ausente, um pai que não teve muito tempo para melhorar como pai – era melhor ter tido tudo isso do que não ter nada, ele desconfia.

A voz dele não aparece agora porque o começo ele não pode contar. Não é que não queira; ele não pode. Como se atrever a narrar uma história que é sua – você sabe que é, sente que é, vive as consequências de sua história todos os dias – se, caralho, você não sabe como é vivê-la porque tinha só a porra dos três anos?

Os começos são alheios à noção de tempo, ele entende agora. E os fins também, como ele devia ter aprendido aos três, como o pai aprendeu aos 36.

3.

Com distanciamento – assim ele foi obrigado a viver a morte do pai. Não o distanciamento com que ele faz questão de ver as coisas hoje, esse que supostamente é bom e vem depois da palavra devido. Não, aquele distanciamento foi lhe imposto à força. 

Para compreender como começa e como termina, para ver como a morte, tão alheia a tudo, muda de forma tão agressiva a vida de quem não escolhe mas tem de continuar vivendo, ele se resigna a ouvinte de sua própria história. 

E já está acostumado a isso. É assim que, quando ouve da mãe que o pai não vai mais voltar, ele faz silêncio. É assim que, quando ouve da mãe que o pai está morto, ele vai até o pequeno jardim. Abaixo da janela do quarto dos pais as flores estão cercadas por fileiras de tijolos. Ele gosta de levantar os tijolos para procurar aranhas, escorpiões, um inseto qualquer, mas o que mais encontra são filtros de cigarros que o pai fumou. Entre as plantas, escondem-se tampinhas de garrafa de cerveja. Depois de ouvir da mãe o destino do pai, que no começo não era a morte, era um lugar especial no céu, o pai virou uma estrelinha, ele vai até o jardim da mãe que tem as marcas do pai e arranca, uma por uma, todas as plantas, todas as flores. Com raiva, segura o caule, faz força com suas mãos de menino de três anos e, pronto, abre-se um buraco, a planta está morta como o pai está morto, a planta vai descansar num lugar especial no céu, a flor também virou uma estrelinha. Mas essa estrelinha ele joga longe, o mais longe que consegue. A mãe assiste: o que a morte faz com os que ficam? Ou: o que os que ficam fazem com a morte?

As unhas dele ficam pretas de terra, e a mãe pede ajuda à filha, irmã dele. Levam-no até o tanque de pedra que fica nos fundos da casa, faz calor, e ali ele toma banho debaixo da torneira, agora sem choro, a irmã vem com a toalha, a irmã esconde o rosto com lágrimas atrás da toalha, mas ele não quer sair do banho no tanque porque está entretido brincando com uma tampinha de garrafa que encontrou no jardim.

4.

Antes de tudo começar, ele nasce. Ou foi aí que começou? Ele não sabe, quer descobrir, mas ainda não sabe. Quando a bolsa da mãe estoura e ele está pronto para nascer, o pai está no bar jogando (o quê?, se pergunta embora nunca tenha tido coragem de perguntar para alguém). A mãe manda avisar o pai: volta para casa, temos que ir para o hospital, vai nascer. O pai diz que já vai. 

Ele está nascendo e o pai diz que já vai. 

O pai não vai. 

Mas ele precisa nascer, a mãe precisa pô-lo no mundo e, como o pai precisa jogar sabe-se lá o quê, o homem que será escolhido seu padrinho é chamado: um Maverick azul marinho sai da zona sul de Porto Alegre rasgando avenidas até o Hospital Fêmina, mais de 15 quilômetros, o dindo dirige muito rápido, o pai disse que já vinha e não veio, a polícia aparece, manda o carro encostar, vocês querem fazer o parto dela aqui?, a polícia então faz a escolta até o hospital. O pai vai aparecer para conhecer o filho. Na manhã seguinte. 

E então, agora sim, este é o começo. 

5.

Esta história começa como grande parte das histórias, boas, ruins, medianas, mas que precisam ser contadas: a partir de uma fatalidade. Um ponto fora da curva que pega a todos de surpresa, que destrói a vida que se teve até ali e nos deixa aniquilados para (tentar) recomeçar outra. 

E termina como todas as histórias que jamais se dão por encerradas: com a impossibilidade de assimilar por completo a morte. É uma necessidade desesperada de imaginar, porque pensar na morte só pode ser o ápice da imaginação. 

Como está presente em todas as outras histórias, também aqui não poderá faltar: a incapacidade de dizer. Que é o que nos faz humanos. O que nos distingue dos animais não é a linguagem, não é a capacidade de entender o outro, de compreender o tempo, o passado, o presente, o futuro, essas coisas a que a gente e dá importância demais; não, nada disso. O que nos distingue é o mesmo que nos aproxima: é tentar dizer mas jamais conseguir – viver sendo incapaz de dizer tudo o que nos corrói por dentro é o que nos faz animais. Lidar com essa incapacidade é o banal que nos une.

Podemos começar. 

A fatalidade.

Em 1993, numa segunda-feira nublada de fevereiro, Porto Alegre confusa entre rasgos de sol e trovões, o abafamento úmido familiar a todo gaúcho e que provoca fortes temporais ao cair da tarde, insignificantes para aplacar o calor mas efetivos para provocar ilusões de alívio, um homem está hospitalizado a fim de realizar um procedimento cirúrgico que pretende arrancar-lhe um dedo do pé em função de um estado avançado de trombose. Durante a cirurgia, a equipe médica constata que o melhor para o homem é que o pé inteiro seja amputado. Dias depois, numa convalescência complicada, o homem precisa voltar à faca, porque agora os médicos decidem que do joelho para baixo nada mais presta. Feita a operação, ele volta ao quarto e à recuperação conturbada. Sente dor. E então o homem, como todos os homens, reclama da dor e pede que lhe tirem a dor. Uma enfermeira aparece no quarto, dedicada a acabar com o sofrimento. Aplica no homem, via intravenosa, um remédio chamado dipirona. Em instantes ele começa a se sentir mal, diz estar com falta de ar e começa mesmo a perder a cor, vai ficando pálido e suas extremidades, arroxeadas. Treme. E sua. A enfermeira lhe administrou dipirona, e o homem é alérgico à dipirona. Médicos são chamados, esforços são feitos, mas o homem morre. A enfermeira não leu no prontuário do paciente sobre a alergia? Ou a enfermeira foi só incumbida da aplicação, talvez a responsabilidade de ler o prontuário e de se inteirar da alergia do homem fosse da chefe de enfermagem ou até mesmo de um dos médicos. Não se sabe qual protocolo foi quebrado, não se pode saber. Mas aí está: uma fatalidade. Nunca se pode ter certeza sobre os motivos que levam a uma fatalidade. 

O homem tem esposa e dois filhos. Não tem pai mas tem mãe, o que configura a realidade da nova vida que os filhos dele terão agora: sem pai mas com mãe. O homem também tem irmãos. E amigos. Ele tinha uma vida, agora não tem mais. Por um simples descuido?, uma desatenção? A partir de agora a fatalidade se encarrega do resto. 

6.

E termina assim: 

A enfermeira vai ao consultório do Dr. Gustavo. Para falar, para contar. É a parte da história que está faltando. Ela está nervosa, não consegue manter as pernas paradas. Ela viveu todo o tempo com a culpa?, ele sente prazer ao considerar essa hipótese. É sádico? Que se foda, se é sádico ou não este é um problema menor aqui, ele precisa da história, do pedaço perdido da história, das certezas de uma história secreta que podem muito bem ser manipuladas por essa mulher que só deve querer perdão. 

E então vem a história da morte: agora da boca da principal personagem. A voz que ainda não fora ouvida por ninguém, a voz fraca pela culpa mas ainda impositiva por ter sido a única a dizer para o pai se acalmar, a ajuda já está vindo, a voz que foi a última que o pai ouviu antes da ausência total de som que deve ser a morte.

Será que agora tudo poderá enfim terminar?