Meu pai nasceu em 1964. Outubro daquele ano.
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Eu nunca conheci o pai do meu pai, o qual ele apenas citava no in memoriam do convite do primeiro e do segundo casamentos dele, sendo que ele morreu apenas oito ou nove anos após o segundo casamento do meu pai.
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Eu tinha um avô. Eu o veria a cada mês ou mais. Era casado com a minha avó paterna. Descobri que ele não era meu avô aos 7 anos, era meu avôdrasto. Uma resposta para quando eu vi meu pai o chamando pelo nome, em algum final de semana prolongado em Mongaguá. Nunca perguntei.
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Nasci em 1986. Fevereiro daquele ano.
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O pouco que lembro da minha infância é que domingo era dia de ir com meu pai. Era uma resposta sem pergunta. “Hoje é domingo, dia de ver seu pai”. Eu tinha apenas um ano quando minha mãe e meu pai se desquitaram.
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Minha tia nasceu em 1976. Março daquele ano.
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Minha tia era meia-irmã do meu pai, menos de dez anos mais nova do que ele. Eu lembro do aniversário de 15 anos dela. Ou melhor, das fotos. O príncipe era um ator global, daqueles que apenas o contracheque de um médico em exercício conseguiria pagar.
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Ator global é aquele ator da Rede Globo.
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Meu tio nasceu em 1977. Junho daquele ano.
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Meu tio, minha tia, meu avô – que na verdade era meu avôdrasto, portanto os meus tios eram meio-irmãos do meu pai -, todos eles se formaram em medicina. Ele virou cirurgião, ela era clínica geral. Nunca os chamei de meio-tio e meio-tia.
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Ela em novembro de 2017, aos 41 anos, faleceu depois de quase dois anos de um câncer destrutivo. A resposta foi a morte. Deixou duas filhas pequenas aos cuidados da minha avó materna.
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Meu pai não fez medicina. Nem prestou medicina. Não se atreveu. Não estava feliz com as respostas. Fez RP em uma universidade de São Bernardo do Campo e depois fez Direito. Acabou como funcionário público do estado. De São Paulo, neste caso. O Estado.
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Pesou na decisão do meu pai, ou na negação da medicina, meu avôdrasto ser médico. Acredito ser um tipo de rejeição. Os dois não tinham um relacionamento bom. Dependendo da época não tinham relacionamento nenhum. Sei por fofoca que ele não o tratava como pai. Nem como padrasto.
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Meu avôdrasto foi obrigado a se aposentar. Certa manhã ele sumiu. Todos ficaram desesperados. O encontraram numa praça de alimentação dormindo.
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Meu avôdrasto faleceu em 2012. Maio daquele ano.
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Meu pai não foi meu herói quando eu era pequeno. Foi meu nêmesis. Tudo que ele queria de mim, eu queria o contrário. Brigamos poucas vezes. Mas as brigas eram dignas de qualquer batalha de HQ de super-herói. Morando na mesma casa chegamos a ficar quase dois meses sem nos falar.
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Sim. Depois do domingo deixar de ser nosso dia oficial, o final de semana se tornou oficial. Morar com ele foi questão de tempo. Falo com orgulho: “Saí da casa da minha mãe com 18 anos”. Fui morar com meu pai.
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Meu pai se casou três vezes: a primeira seguindo os preceitos da tradição católica, na igreja matriz de São Bernardo do Campo; a segunda foi para os lados protestantes – igreja presbiteriana; a terceira foi com menos pompa religiosa, apesar de firmados de acordo com as tradições espíritas kardecistas.
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Há um tempo parei para pensar (porque me movimentando não penso muito), e creio nessa mudança de religião constante como uma resposta à pergunta: “Qual me salvaria mais rápido?”
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Eu odiava minha vida escolar dos 11 aos 15 anos. Nessa época, eu era gordo e tinha peitinhos, mais peito que muitas meninas da minha sala. Diziam que eu tinha cabeção, que era uma vaca leiteira e ficava entre os últimos na categoria meninos mais bonitos da escola. Eu chorava depois de muito tempo ouvindo essas coisas.
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Meu pai tinha peitinhos e parecia não ligar. Andava com o peito estufado e não ligava que seus mamilos pareciam dois morangos gordos saltando da camiseta. Meu irmão teve peitinho também. Minha irmã também. Ela não ligou muito, até ficou feliz quando teve peitinhos. Meu irmão e eu andávamos feito corcundas de vergonha. Não tiramos a camiseta na praia, não entrávamos na piscina. Meu pai resolveu emagrecer, certa época. Ele comeu filé de frango, não bebeu nada alcoólico, treinou todos os dias na academia, assistiu vídeos de vale-tudo alugados na locadora, mas perdeu os peitinhos. Durante todo esse tempo, ele tentou que eu praticasse um esporte qualquer, de preferência futebol, sem ser goleiro. Meu irmão ficou obeso antes dos 15 anos de idade, não tinha amigos na escola, problemas de audição devido a um furo no tímpano e tinha peitinhos grandes, compridos, murchos e caídos.
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Pensar, na adolescência, e de acordo com meu pai, é pensar besteira. Estar em casa sem fazer nada é pensar besteira. Qual a besteira? Nunca perguntei. Não parecia algo bom, por isso aceitei – sob pressão – passar as férias no trabalho do meu pai. Eu cuidava dos arquivos, almoçava com as pessoas de lá e passava 8 horas de todos os dias das férias. Quase não vi meu pai naquela época.
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Meu tio era o que chamavam de molecão. Fazia cursinho pré-vestibular para medicina e quando eu não estava pensando besteira ou trabalhando com meu pai, era com ele que eu passava as minhas férias. Cinema, boliche, videogame. Não é besteira quando é compartilhado.
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Aos 15 anos, meu tio deixou eu dirigir o carro dele depois da festa de Natal. Bêbado e pouco articulado, ensinou como deu a trocar a marcha da primeira para a segunda. Eu estava com uma camiseta do Black Sabbath.
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Minha mãe nasceu em 1963. Julho daquele ano.
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Minha mãe tinha pai e mãe. Conheci os dois. Meu avô morreu em 2002. O apelido dele era Bebé e se chamava Osvaldo. Minha bisavó por parte de pai era chamada de Dida – eu a conheci também, e só descobri seu nome após a morte dela. Minha avó materna era conhecida por Mariquinha nas ruas do bairro onde eu cresci. Por muito tempo, ela era minha companhia durante o dia após a escola. Ela tinha o pavio curto, vivia com dor no “espinhaço” e todos os dias passava com uma lata de Nescau toda furada, cheia de carvão, soltando fumaça pela casa.
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Bebé era caminhoneiro, ou cegonheiro para quem é do ramo, e quase não estava em casa. Minha avó falava com ele uma vez por dia. Tantan Tantan tantan “chamada a cobrar para aceitá-la continue na linha após identificação”. Bebé era nômade, ou itinerante, como queira chamar, e às vezes colocava na cabeça que era melhor morar em Macapá ou em Vitória, no Espírito Santo. Minha avó se mudou para Vitória numa época, e eu passava as férias lá, bem antes de ir pro trabalho com meu pai porque não era para eu pensar besteira. Meus primos passavam as férias juntos. Como eu não tinha irmãos, as brigas eram com meus primos.
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Bebé faleceu em 2001. Dezembro daquele ano.
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Eu mordi o peito do meu primo uma vez. Ele tem a cicatriz até hoje. Não tinha irmãos para brigar na época, eles chegaram depois. Não adiantava muito, porque não queria brincar ou brigar com eles.
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Meu irmão nasceu em 1995. Novembro daquele ano.
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Minha irmã nasceu em 2005. Fevereiro daquele ano.
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Como meu pai teve três casamentos, ele teve três filhos. Um em cada casamento. A diferença de idade de um filho para o outro era 9 anos e alguns meses de um para o outro. Mesmo casando em três religiões diferentes, meu pai era, ao meu ver, muito fã de numerologia. Os nove anos de diferença de um filho para o outro confirmava isso.
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Os finais de semana na casa do meu pai eram terríveis para qualquer criança. A diferença de idade entre nós era pouco mais de 20 anos. Ele tinha eventos sociais com amigos de infância regados a muita bebida, cinco ou seis horas dos sábados dedicados a ficar com eles bebendo, conversando, falando besteira – mas eu não podia pensar besteira, e me obrigar a comer salada. Quando esses eventos não aconteciam, era necessário passar parte do sábado ou domingo limpando a piscina, furando paredes, montando algum móvel e assistindo alguns dos três filmes alugados. Meu pai não tinha TV a cabo. A diversão se resumia aos filmes alugados. Eu não tinha poder de voto, era menor de 16 anos, então teria de me contentar com os critérios dele para escolher as fitas que seriam assistidas no final de semana. À parte isso, meu pai por muito tempo tinha um forno de pizza na garagem da casa, onde ele fazia encomendas e entregava. Era a grana extra além do salário de funcionário público. A casa tinha uma garagem para dois carros e uma moto. Meu pai teve diversas motos. Eu odiava. Nunca gostei de motos. A casa tinha dois quartos, uma piscina, uma sala, uma cozinha e um banheiro no fundo. Por uns anos tinha dois cachorros: um pastor alemão e um rottweiler. Além de limpar a piscina, era preciso limpar toda a bosta dos cachorros. Meu pai não gostava de gatos, apenas cachorros. Aquela casa era alugada entre aspas. A casa era um dos vários imóveis que meu avôdrasto tinha e ele alugava entre aspas para o meu pai. Com a chegada do meu irmão, em outubro de 1995, a casa não fazia mais sentido. Um apartamento em outro bairro foi comprado. Era enorme. Para o meu tamanho na época, era enorme. E, apesar de enorme, ainda tinha apenas dois quartos. Quando eu visitava meu pai, eu dormia na sala de TV e meu irmão no quarto. Neste novo apartamento, meu pai tinha TV a cabo.
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A minha insegurança é transmitida pelo comportamento das minhas mãos. Eu esfrego os dedos uns nos outros sem nunca entrelaçá-los, esfrego as palmas uma na outra enquanto falo o que penso ou que pensei antes de falar. Por muitos anos, eu não pensei besteira, e isso me fez ser uma pessoa explosiva. Eu atropelava palavras, aumentava o tom, perdia o ar e conseguia, vez ou outra, falar o que me incomodava. Passei a pensar mais antes de falar e acabei parando de falar tanto quanto gostaria. Falo sobre assuntos que, na teoria, não necessitam tanto de pensamentos profundos, de análise de percurso.
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Em uma das férias que passei no trabalho do meu pai, ele me mandou ler um livro para não pensar besteira. Todos os dias eu tinha de ficar em um canto, depois de cuidar do arquivo, e me aprofundar na leitura. No final, ele faria uma espécie de prova oral para saber se eu realmente tinha lido.
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A fotografia por muito tempo me entreteve, depois veio o cinema e depois a literatura. Eu gostava de ler porque ocupava meu tempo e minha cabeça, assim eu acabava não pensando besteiras. Pulava de O apanhador no campo de centeio a Crime e castigo e estava tudo bem. Eu não pensava em besteira.
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O que era pensar besteira. Tive muito tempo para isso. O que era pensar besteira, nunca pensei bem sobre isso. Mas acho que é besteira da minha parte continuar pensando. Melhor ficar sem resposta.
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Meu pai faleceu em 2018. Agosto daquele ano.