Eu não preciso dar detalhes, vocês têm acompanhado as notícias nacionais: vivemos num momento muito estranho e imprevisível, e não me refiro à pandemia. Como disse o Le Monde do último dia 18, “Há algo de podre no reino do Brasil”.

No entanto, o que está ocorrendo em nossa história política recente, com a ascensão de um autoritarismo retrógrado ao poder, não é exatamente uma novidade – tem até cara de repeteco anacrônico de mau gosto. Muitos antes já notaram o fato de que crise política quase rima com história nessa na Bruzundanga. A democracia enfrenta muitas dificuldades de cavar seu lugar ao sol nesse terreno tão assolado pela desigualdade e pela cultura autoritária, e o que vemos com Bolsonaro no poder é o mais novo capítulo dessa triste, mas não irremediável, dificuldade.

Espero que já tenha ficado claro a essa altura que a ignorância NÃO é uma benção, ao contrário do pretenso truísmo chapa-branca, de modo que gostaríamos de recomendar algumas leituras que podem ajudar a pôr alguma ordem nesse caos.

Tormenta – O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos (Companhia das Letras, 2020), de Thaís Oyama – Se você está disposto a entender esse troço, esse é o melhor lugar para começar. É possível colocar a obra tanto na categoria de livro-reportagem, pois extremamente bem documentado e factualmente rigoroso, quanto na estante de análise política, posto que não se contenta em fazer uma descrição impressionista dos eventos (o que já seria louvável), mas enfeixá-los em argumentos lúcidos. O livro de Oyama consegue equilibrar com coragem e destreza de ofício o papel de concatenar uma teia de fatos complexa e caprichosa sem perder de vista a moldura interpretativa maior, tudo amarrado numa escrita elegante e acessível. A autora é uma verdadeira Ariadne no labirinto de manchetes perniciosas que têm assolado grande parte do jornalismo, pressionado pelas fake news de um lado e a corrida pelo “furo” de outro, ao passo que o retrato que constrói do primeiro ano de governo de Bolsonaro só podia ser a constatação de Febeapá reacionário que tomou conta do poder federal.

O cadete e o capitão: a vida de Bolsonaro no quartel (Todavia, 2019), de Luiz Maklouf de Carvalho – Antes de simples ensaio biográfico sobre os quinze anos de Bolsonaro no quartel, o que o autor pretende no livro é questionar a absolvição dele pelo Superior Tribunal Militar quanto ao que ficou conhecido como plano “Beco sem saída”. Em 1987, a revista Veja publicou (edição n. 999) os croquis de um plano para “(…) explodir bombas em várias unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende (RJ) em vários quartéis”, acusando Bolsonaro e outro capitão de serem seus autores. O caso estava vinculado a insatisfações quanto aos baixos salários dos oficiais, que Bolsonaro havia trazido a público na mesma revista no ano anterior. O episódio de 1987 rendeu grande repercussão na imprensa e ocasionou um processo de investigação e julgamento de Bolsonaro, sobre o qual Maklouf de Carvalho se baseia (dentre inúmeras outras fontes, todas devidamente citadas) para construir sua apreciação crítica do processo todo. As lições que podem ser extraídas dessa investigação são preciosas para entender a simetria entre essa figura e a pauta política do Brasil recente. Igualmente importante é a ligação que o livro permite enxergar (mais no plano de fundo, contudo) entre a têmpera política daquele momento histórico e a projeção de Bolsonaro na carreira parlamentar: seu nostalgismo autoritário e seu ressentimento em relação à democracia.

Bolsonaro – O homem que enfrentou o Exército e desafia a democracia, de Clóvis Saint-Clair (Máquina de Livros, 2018) – Como o livro foi publicado antes das eleições, não teve como incorporar os desmandos do governo efetivo no apanhado biográfico. Também por ser pré-eleições, tem um caráter de dossiê informativo com vistas a esclarecer acerca da trajetória do então candidato ao longo de quase 30 anos de mandato. Comparado com os dois livros citados acima, tem menos caráter argumentativo e mais caráter ilustrativo, o que significa que incorpora diversos trechos de entrevistas, matérias jornalísticas, transcrições de debates na Câmara e declarações gerais, assim documentando de modo robusto o retrato que propõe de Bolsonaro. Particularmente aflitivo nesse livro, além da exposição das entranhas ideológicas do presidente em sua própria fala (o que fatalmente demonstra sua inépcia agressiva), é acompanhar quantas vezes seu mandato esteve prestes a ser cassado e não foi.

Como matar a borboleta azul – Uma crônica da Era Dilma (Intrínseca, 2016), de Monica Baumgarten de Bolle – Economista tarimbada e atual professora da John Hopkins University em Baltimore, a autora produz uma análise rigorosa e impiedosa da política econômica do governo Dilma Rousseff, dando ao leitor condições para entender as controvérsias envolvendo o planejamento econômico, as várias trocas de Ministros da Fazenda no segundo mandato e como a crise política se alimentou da crise econômica. A disposição de Monica de Bolle em destrinchar os grandes indicadores econômicos, como o PIB e a taxa de inflação, e explicá-los em seus componentes menores e significados concretos é louvável. A linguagem é árida e, para os não-familiarizados com a linguagem técnica da economia (como eu), é às vezes difícil acompanhar o raciocínio da autora, mas o esforço compensa. Com a mecânica da economia explicada, fica mais fácil entender quais condições participaram da assombrosa guinada autoritária que o país deu.

Dilma Rousseff e o ódio político, de Táles Ab’Sáber (Hedra, 2015) – O principal mérito desse livro tão curtinho é desenterrar as causas da crise econômica em 2012, a partir da manobra de Dilma para tentar domar capital financeiro, e ligar essa crise à ascensão do autoritarismo espumante que desde então guindou-se ao poder em vários setores. O fio que une junho de 2013 com o antipetismo e a re-articulação da direita nos anos seguintes repousa sobre mudanças sociais ocasionadas pela política econômica petista, mas confrontadas com a exaustão desse modelo de crescimento pós-crise de 2008. Com essa articulação mapeada no plano político mais saliente, Ab’Sáber pode persegui-la no plano mais propriamente social, passando em revista fenômenos curiosos como a eleição do comunismo para servir como espantalho comum dos conservadores, e a lógica da adesão da “nova classe média” ao jogo eleitoral à direita do espectro político-partidário.

À sombra do poder – Os bastidores da crise que derrubou Dilma Rousseff (LeYa, 2016), de Rodrigo de Almeida – O autor esteve ligado à assessoria de imprensa da ex-presidente durante o período em que correu o processo legal de impeachment, possuindo uma visão privilegiada das articulações escusas das camarilhas do Congresso, da atuação política da Operação Lava-Jato e dos planos de contenção do governo em relação a cada novo passo dado no trâmite. Além do relato bem documentado por conta das exigências de ofício (corre junto dele um panorama da imprensa de 2014-2016), Rodrigo de Almeida tem uma virtude muito benfazeja: ele inclui detalhes prosaicos do cotidiano no Planalto que ajudam a entender as dinâmicas práticas daquele universo, tais como ditos comuns, o folclore dos partidos, os ritos não-oficiais do governança etc. O acompanhamento quase dia a dia dos eventos da crise do governo Dilma Rousseff é iluminador para perceber onde se encontram os nós da conjuntura a que chegamos.

O Lulismo em crise, de André Singer (Companhia das Letras, 2018) – Uma das mais brilhantes interpretações acerca da conjuntura que levou à queda de Dilma Rousseff, sustentada pelos avanços que o autor consolidara em Os sentidos do Lulismo, de 2012, e pela posição privilegiada em que se encontra por ter sido porta-voz da presidência no primeiro mandato de Lula. A hipótese de Singer, grosso modo, é de que o cenário de instabilidade se deve à acentuação das contradições consolidadas na eleição de 2006, quando a classe média afastou-se de Lula em virtude do escândalo do “Mensalão”, e o “subproletariado” aderiu em massa à reeleição (“subproletariado” sendo a população que historicamente tem estado entre semi-empregada e semi-desempregada no Brasil). Essa reconfiguração impôs rearranjos político-partidários e redesenhou o encaixe entre estratificação social e relações de poder, ao passo que se tornou dramática quando o “reformismo gradual” que caracterizou os governos PT chegou ao limite de sua expansão, impondo a Dilma Rousseff a decisão entre uma capitulação conservadora ou o robustecimento do reformismo mais à esquerda. Desse cabo-de-guerra, junto com os holofotes da Lava Jato e os acordos à direita, nasceram os eventos de 2016.

Bônus: O texto de Marilena Chauí publicado na coletânea Por que gritamos golpe? (Boitempo, 2016), intitulado “A nova classe trabalhadora brasileira e a ascensão do conservadorismo”, é certeiro. Como quase tudo que essa grande filósofa brasileira escreveu ao longo de sua trajetória intelectual e política, trata-se de um texto claro sem ceder a simplismos, rigoroso sem cair no hermetismo, e politizado sem abrir mão da sensatez. Explica com maestria como os esforços de redistribuição de renda da história brasileira recente mudaram a estratificação social, mas não necessariamente levaram à consolidação de uma política democrática.