Se deus me chamar não vou
Em entrevista, Mariana Salomão Carrara conta sobre o processo de criação da perspectiva infantil que aborda a solidão e o medo da morte.

“Se deus me chamar não vou”. Peraí, por que deus tá minúsculo? Se essa pessoa não acredita em deus (e escreve em minúsculo), por que deus a chamaria? Por que afirmar que se um deus no qual não acredita chamá-la, ela não vai? Isso é uma conversão? Ou isso é a morte?

Tantas perguntas para um título só.

Ainda assim, mesmo com um título tão forte, nada nos prepara para nosso encontro com Maria Carmem, narradora e personagem principal do terceiro livro da paulistana Mariana Salomão Carrara. A partir de uma perspectiva infantil (Maria Carmem tem apenas 11 anos), Carrara aborda a solidão, o medo da morte e o sentimento de não se encaixar completamente na sociedade ao seu redor. No entanto, mais do que isso, o livro retrata a formação de uma autora, já que uma das características principais de Maria Carmem é sua vontade de narrar as experiências e procurar sua voz.

Em uma entrevista por e-mail, conversei com Carrara sobre como foi criar a voz de uma criança-escritora – ou escritora-criança.

Existe um senso comum de que uma história de uma criança seria necessariamente uma história infantil e, enquanto narradora, Maria Carmem é um forte exemplo de que isso nem sempre é o caso. Como foi para você o equilíbrio entre uma personagem infantil e uma história adulta? 

Eu acho que escrevi não sabendo desse senso comum, porque, na verdade, já tinha lido alguns livros narrados por crianças em que, ao contrário, o tema era extremamente árido. E eu queria outro caminho, uma criança com todos os direitos básicos atendidos e, ainda assim, apavorada ou infeliz. Então, meu referencial eram crianças narradoras vítimas de guerra, mortes, doenças, e o desafio era que uma menina comum de onze anos pudesse falar de sua vida comum, de uma perspectiva infantil, mas que isso interessasse principalmente aos adultos. Acho que temas como solidão, medo da morte, insônia, e angústias sobre religiosidade e envelhecimento já direcionam a história diretamente ao mundo adulto ou pelo menos juvenil. Tem também o elemento nostálgico, que só faz sentido com o distanciamento dos anos.
O que também não significa que o livro não seja interessante de ser trabalhado em escolas, muitos professores já vieram me falar de diversas ideias para ler em sala de aula o livro, estimulando a conversa sobre bullying, gordofobia, composições familiares, etc. Para manter esse equilíbrio, eu me apoiei bastante nas lembranças dos meus onze anos, na extrema solidão que eu sentia ali, e imaginava como teria sido pesado se eu tivesse verbalizado para os adultos – ainda mais na forma de livro – tantas coisas que eu pensava ou confundia. A partir dessa reflexão, entraram todos os temas que a Maria Carmem aborda, como aspirante a escritora, ambicionando se dirigir aos adultos, já que não vê nos seus pares nenhum interlocutor – muito menos um leitor.

Enquanto narradora, Maria Carmem provoca um grande deslocamento para o leitor, que vê o mundo a partir da vista de uma criança (percebemos, por exemplo, várias coisas antes dela). Como foi para você criar essa perspectiva? Quais foram os exercícios de escrita para chegar nessa voz?  

Sim! Eu queria muito isso, que o leitor tivesse vontade de falar com ela, de responder, pra dar corpo a isso que era ter onze anos e não haver interlocutores. Mas também queria que percebêssemos algumas coisas junto com ela, já que muitos adultos ainda estão contaminados de hiper-romantismo e ainda mantém esse olhar pejorativo sobre o solitário. O exercício da voz dela também se deu em cima dos meus escritos de onze anos, porque eu já queria ser escritora e tinha muitos contos, e alguns deles foram sobrevivendo às trocas de computadores. Em cima daquelas histórias, construí manias de linguagem, uso de hipérboles, muitos advérbios, expressões meio sofisticadas no meio de frases singelas. Procurei construir uma narradora não necessariamente real ou comum, mas possível, que tivesse onze (depois doze) anos e soubesse tão pouco quanto eu sabia sobre sexo, amor e futuro, mas que quisesse saber tanto quanto eu queria, e com a vontade de comunicar de uma forma literária. Então, tinha de ser não uma criança falando, mas uma criança preocupada em escrever um livro.

Uma coisa que me chamou muita atenção foi a maneira com que os desvios na norma padrão da língua são uma parte essencial da caracterização da personagem. Em que momento você percebeu que isso seria importante? E como chegou nesses desvios específicos? 

Eu acho, na verdade, que até me apoiei pouco nesses desvios, por ser a Maria Carmem uma criança particularmente obcecada com as aulas de redação e com a inteligência – que, para ela, era uma de suas poucas qualidades. Então, ela não tem todos os erros costumeiros de uma criança mais desinteressada da leitura e escrita, mas só uns deslizes – alguns até opcionais da rebeldia dela, como a liberdade com as vírgulas –, pra manter
o leitor o máximo possível perto dessa criança. Então, escolhi os desvios mais espontâneos possíveis, que só escapam do escrutínio dela porque está muito envolvida no embalo da sua narração, ou porque ela assim decidiu. As vírgulas, além de escolha dela, também eram decisões minhas para imprimir a oscilação do ritmo infantil da fala, já que, em alguns momentos, a vozinha dela se perde em velozes discursos aflitos, e às vezes se contém, reflexiva, em recortados respiros.

O livro faz um movimento entre uma leveza e uma densidade. A inocência da personagem criança faz um contraste com diversas situações e pensamentos difíceis que ela tem; o próprio começo do livro é mais cômico e só depois fica mais triste e introspectivo. Você acha que esse é um caminho natural da vida?

Acho que é o caminho natural da reflexão. No começo, ela está tateando como é escrever um livro, preocupada em falar da professora, de como encerrar capítulos, está começando a narrar como foi que começou aquele ano. Aos poucos, ela fica mais íntima da escrita, e o próprio movimento de narrar faz com que passe a desabafar. Além disso, ela está na idade em que cada mês faz muita diferença no amadurecimento, então começar com onze anos e terminar com doze acaba fazendo bastante diferença em como
ela vê aquilo que está narrando.

Uma última pergunta, pois curiosa. O que você está lendo agora? 

Como estou lendo Crônica da casa assassinada [de Lúcio Cardoso], que é muito longo, tenho escutado livros em áudio durante as tarefas domésticas. Recentemente terminei de ouvir Arquivo das crianças perdidas, da Valeria Luiselli, e amei; estou recomendando pra todos.


Título: Se deus me chamar não vou
Autora: Mariana Salomão Carrara
Páginas: 160
Editora: Nós


Gisele Eberspächer é jornalista e tradutora. Vive entre livros e não sabe se gosta mais de café ou chá – então toma os dois compulsivamente. Fala sobre literatura no canal do YouTube “Vamos falar sobre livros?” desde 2012.