Um dia eu publiquei na Internet algo sobre um bilhete colocado dentro de uma garrafa e jogado no mar. Assim que me encontrou, o Sergio Napp disse: “Trouxe algo pra ti”. Era uma garrafa pequena e de vidro transparente. Faltava a rolha no gargalo, mas o recado não podia ser mais direto. Ele ouvira o meu chamado. Sempre ouvia. Algumas vezes para não perder a piada, em outras para se fazer presente, mesmo sem dizer mais nada. Neste dia, enfatizou: “Para usar quando for preciso”. 

Assim era o poeta, que gostava de lançar livros em noites frias do inverno gaúcho. Que morava numa casa de vidro com vista para o Guaíba e os barcos na zona Sul de Porto Alegre. Que me ligava quase na madrugada para dizer, logo depois de ouvir o meu alô, “comecei um livro novo”. Que me chamava de Lurdes para confundir os incautos. Para quem não sabe – e muitos de vocês podem não saber – foi um grande letrista, poeta e personalidade cultural – que faleceu há cinco anos, no dia 28 de maio de 2015. O grande amigo da minha vida. 

Já escrevi que nos conhecemos – de forma mais próxima – trabalhando para a Feira do Livro de Porto Alegre em 2002. Na mesma equipe, numa sala minúscula, dividida por sete ou oito pessoas. E ele falava alto. E não se privava de atirar absurdos para todos os lados. “Para, velho”. O melhor velho de todos, que já tinha cabelos brancos com 30 e poucos anos. E seguiu com uma vasta cabeleira de algodão. 

Nesta época, já era poeta e contista. Formado em engenharia e ex-professor universitário. Havia vencido a Califórnia da Canção Nativa no início da década de 1980 com Desgarrados. Uma canção sobre a migração urbana, a busca de novas possibilidades. E um hino sobre qualquer pessoa longe do lugar ou de alguém que ama. Tenho um trecho da música tatuado no antebraço esquerdo. “Sopram ventos desgarrados, carregados de saudade…”

Também já havia sido diretor da Casa de Cultura Mario Quintana durante duas ocasiões – na reforma que transformou o antigo Hotel Majestic em centro cultural e logo depois da inauguração. Foi na Feira que descobri os dois lados do Napp: o improvável acolhedor e o terrivelmente pândego. Lembro de gargalhar, no meio da chuva, em plena Praça da Alfândega à noite, quando o levei até o carro com a minha sombrinha. A amada-amante Loreta tinha vindo buscá-lo. E, no caminho, ele contou a história do carro. A recente batida na traseira, a contratação do chapeador e a nova identidade. Me dobrei de rir quando vi, próximas da luz de freio, as letras indicando: ESCROT. Era a cara do Napp manter a letra no lugar errado e não perder a chance de brincar com isso.

Depois da Feira, trabalhamos por quatro anos juntos, com nossas salas lado a lado, no corredor do segundo andar da Casa de Cultura. Ele como diretor e eu como coordenadora da assessoria de comunicação. Por isso muitas das histórias que eu conto dele se misturam com as minhas, porque não sou uma narradora confiável. Não falávamos sobre tudo. Mas ele não se privava de responder perguntas difíceis. Me acostumou mal. Gosto de fazê-las até hoje e são poucos os interlocutores que se dispõem. 

Uma vez sugeri que ele usasse o WhatsApp. Ele disse que não. “Isto é um negócio do futuro. E não vou chegar lá”. Não chegou mesmo. Imagina o que diria sobre 2020. Em outra ocasião perguntei se ele sabia que tocariam Desgarrados durante o velório dele. E se ele queria que eu expulsasse todos de lá. Em alguns momentos havia mágoa pelo pouco reconhecimento que há (ainda hoje) da cultura. Mas próximo do fim: não. “Deixa de ser boba. Será inevitável”. E foi: inevitável e lindo. Uma das coisas mais lindas que eu já presenciei. Um monte de gente cantando “mas o que foi, nunca mais será…”

Antes de morrer, ele me contou como gostaria que fosse a sua partida. Uma cena linda. Uma das últimas que ele criou. Também me avisou que, no computador, estava um arquivo chamado Réquiem. Que era o testamento dele, em forma de poesia. Algo que todos imaginaram ser tão forte, que fugiram da leitura. A Solange, irmã dele com quem conversei sobre o livro, tinha medo de sofrer pelo conteúdo. A literatura do Napp sempre foi muito forte. Solange acabou falecendo, alguns anos depois, sem ler a despedida do irmão. 

Eu li. Ele sabe que eu li. E talvez isto tenha encerrado as nossas conversas diretas, em textos em primeira pessoa que fiz durante alguns anos. Mas que perderam um pouco do sentido, agora que eu sei onde ele está. 

O Napp fez livros de poesia, conto e romance. E, muitos anos antes do crowdfunding, organizou uma série especial de gravações e de CDs, cujos intérpretes incluem Angela Jobim e Geraldo Flach. Também publicou novelas infantojuvenis e livros infantis – de prosa e de poesia. Passarinhar-se e Menino com pássaro ao ombro são os meus preferidos. Em 2013, lançou O penico do general, que tem o meu filho Lucas como personagem. 

Quase tudo está no impresso. E, um dos livros dele que possui uma seleção de contos premiados (e fortíssimos, diga-se de passagem) fez parte de uma coleção de e-books da Dublinense. Lançado originalmente em 2000, foi reeditado em 2014 e pode ser acessado pela Amazon. É uma boa chance de conhecer a literatura deste gaúcho de talento múltiplo.  

Foram cinco anos estranhos depois da partida. Talvez nem fáceis, nem difíceis. Apenas com menos graça. Mais solitários e com os vazios que surgem quando as nossas pessoas da nossa vida vão embora e não voltam. A garrafa segue comigo. E, um dia, vou colocá-la no mar. No bilhete, o Napp já sabe o que irá escrito. Ele sempre soube. 

Sinto a tua falta, ex. Te amo pra sempre.