Há pouco mais de dez anos, depois de ter entrado na universidade, tive a ideia talvez inusitada de fazer uma graduação em Letras com habilitação em português e latim. Sim, latim. Au-au, a língua dos cachorros, como diz a piada que sempre me contam. Não é uma escolha comum, eu sei. Na verdade, se me falassem um ano antes, ainda no colégio, que eu acabaria fazendo uma faculdade de latim, nem eu acreditaria. A reação das pessoas a esse dado da minha vida varia entre o riso e a fascinação, mas quase todas concordam numa coisa: elas não estudariam essa língua. E, como eu disse, nem eu estudaria, mas mudei de ideia porque um dia vi que Roma Antiga não era bem como eu pensava que fosse. Essa conclusão veio de um romance, Satyricon, de Petrônio, mas acho que a percepção de vocês pode mudar por outro livro: SPQR – Uma história da Roma antiga, de Mary Beard, publicado no Reino Unido em 2015 e lançado por aqui em 2017, pela editora Planeta.

É um livro escrito por uma classicista inglesa que é professora na Universidade de Cambridge e é conhecida por seus best-sellers, por seu posicionamento progressista e feminista e por suas aparições na televisão britânica, como na série Meet the Romans with Mary Beard. Seu nome está sendo mais citado nos últimos tempos devido a um debate com um classicista famoso por outros motivos, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson. Esse episódio, inclusive, já que a fez refletir sobre o assunto a sério neste ano em sua coluna, A Don’s Life. Recentemente, no Brasil, foram publicados outros livros seus, como Pompeia: a vida de uma cidade romana e Mulheres e poder: um manifesto. São todos motivados em parte pelo que é esclarecido em SPQR logo no começo: a vontade de apresentar uma Antiguidade diferente do imaginário popular. Sua Roma é bem mais diversa e complexa, bem distante dos lugares-comuns a que pessoas se referem.

Quanto à história em si, Mary Beard diz em seu prólogo que tratará do período desde as origens míticas de Roma, com Rômulo e Remo num possível século VIII a.C., até o império de Caracala, no século III d.C. No entanto, de modo diferente daquela visão mais tradicional de história, bem cronológica, focada só nas grandes figuras, nas autoridades e nas guerras, ela escolhe abrir com um capítulo sobre o processo de Cícero contra Catilina, em meados do século I a.C. Nesse momento, a República Romana se encontrava, podemos dizer, no seu auge e também em iminente queda, prestes a se iniciar o Império. Essa primeira apresentação de Cícero e das instituições republicanas, bem como de uma série de problemas da sociedade romana, é fundamental para os capítulos seguintes, focados em momentos anteriores e posteriores. Mesmo nessas outras partes, a autora se sente à vontade para fazer referências constantes e adendos a acontecimentos já descritos ou que ainda serão explicados no livro. Em relação às autoridades e às guerras, elas são matéria do livro também, é claro, mas sempre se parte desses acontecimentos para explorar outros aspectos menos conhecidos ou mesmo misteriosos da vida na Antiguidade.

As semelhanças entre a sociedade romana e a atual também ficam mais claras em SPQR. A autora faz questão em diversos momentos de fazer paralelos, como quando conta da campanha de Tibério Graco no século II a.C., ainda durante a República Romana, a favor da redistribuição das terras por novas leis agrárias que favoreceriam os pequenos agricultores que, segundo o político romano, tinham sido perdidas para os ricos. Esse cenário nos lembra da questão agrária no mundo capitalista, em especial no Brasil, e a ele ainda se acrescentam as dúvidas de Mary Beard e outros historiadores acerca das reais motivações de Tibério Graco, que, durante sua reforma agrária às pressas, promoveu uma votação para que se retirasse do cargo um tribuno da plebe que era contrário às suas ideias, num processo muito similar a um ou outro impeachment que vemos por aí. Ao fim de tudo isso, a briga de poder com os senadores e os optimates (em latim, os “melhores”, que seriam, na verdade, os ricos conservadores da época) promovida pelo político romano levou ao seu assassinato, um tipo de acontecimento que infelizmente também nos faz lembrar da realidade do Brasil e de outros países. Trata-se de apenas um exemplo dos vários possíveis de relações que são feitas entre o mundo na época e o de hoje.

Também fica bem claro como Mary Beard é uma ótima narradora, um requisito fundamental para qualquer pessoa que queira contar histórias, ficcionais ou não. Às vezes, ela exagera um pouco no suspense, principalmente nos dois primeiros capítulos, mas no geral sua narração consegue ser ágil e detalhista ao mesmo tempo. Por seu texto, Roma Antiga parece se tornar em alguns momentos um grande romance de muitas personagens, com idas e vindas no tempo e no espaço, tornando-a atraente para todos. Apesar disso, não é como se tudo já estivesse dado: a historiadora nos chama a atenção o tempo todo para suas dúvidas, para o que ainda são mistérios para historiadores e arqueólogos, para o que está, enfim, ainda sujeito a interpretações, inclusive da parte do leitor. Em seu texto, também se destaca o grande uso de fontes primárias, ou seja, de textos antigos e de vestígios arqueológicos como base de sua reflexão, o que nos auxilia muito a formular visões novas, sem repetir ideias preconcebidas. Para que isso aconteça, no livro também são de boa ajuda os mapas no início, as muitas imagens ao longo do texto, e as leituras complementares e a cronologia ao final.

Embora seja um livro para todos, algumas escolhas da parte da autora complicam a vida do leitor, como não explicitar algumas especificidades da sociedade romana nem citar nomes ou fontes de algumas informações, tornando limitadas as possibilidades de se ir além de SPQR. Outro problema, dessa vez da edição brasileira, é que equívocos na tradução ou em etapa posterior do processo editorial fizeram com que alguns nomes romanos e outros elementos antigos fossem vertidos de maneira errada em português, o que pode ser incômodo para quem quiser pesquisar sobre o assunto depois. Fora essas questões, trata-se de fato de um livro importante para quem quer saber mais da Antiguidade greco-romana por aqui.

O trabalho de Mary Beard é muito voltado para a divulgação científica, inclusive em seu Twitter e em sua coluna que já citei, A Don’s Life. Faz parte dessa produção a escrita de textos como SPQR, voltados para o público em geral, bem fundamentados em pesquisas recentes. Infelizmente, é uma tarefa a que pouca gente se dedica, mas que pode fazer com que todos se interessem pela ciência e, bem, evitar que mentiras de certos políticos e empresários se espalhem com tanta facilidade. E, por incrível que pareça, isso é especialmente importante no caso da Antiguidade greco-romana. Muitas pessoas se utilizam da história e da cultura antigas para fundamentar alguns absurdos ou apenas se promover – o que, na verdade, sempre foi uma prática comum. O próprio Boris Johnson é um exemplo disso. Muitos grupos políticos estadunidenses também. E por aqui até o atual chanceler brasileiro já andou falando de gregos e romanos para embasar suas ideias. Sem falar de todo mundo que opina pela internet afora. Por essas e outras, ter interesse pela vida de gente que viveu muitos séculos atrás, por essa barbárie que nos parece tão distante, pode ser mais importante do que você pensa para evitar que o século XXI, esse sim, vire uma barbárie.

Algumas sugestões: aos interessados, há boas formas de saber mais dos usos políticos do passado, em especial da Antiguidade clássica. No Brasil, destaco o blog História Antiga e Conexões com o Presente. Em inglês, existem mais opções, como os sites Eidolon e Pharos e o podcast das Partial Historians.


Título: SPQR – Uma história da Roma Antiga
Autora: Mary Beard
Tradução: Luis Reyes Gil
Páginas: 735
Editora: Crítica