Livro mostra relação entre realidade e narrativa por meio de cobertura jornalística de uma investigação e como isso afeta a vida da protagonista.

Existe um estudo de caso que, mais tarde ou menos tarde, qualquer estudante de jornalismo vai discutir: é o da Escola Base. Em resumo, uma escola começou a ser acusada de assédio infantil, e os veículos de imprensa cobriram a denúncia com muito afinco. Até que se descobriu que provavelmente nada aconteceu – o caso foi arquivado por falta de provas. Impossível saber o que de fato aconteceu, mas ficou-se entendido que os donos não eram culpados de nada. Ainda assim, sua vida se tornou um inferno, a escola foi fechada, e os envolvidos ficaram marcados. E isso tudo em 1994. 

Esse é só um exemplo, bastante emblemático ainda que não tão recente, do impacto de uma cobertura jornalística sobre o mundo. Supostamente, o jornalismo deveria relatar acontecimentos relevantes para aqueles que não eram testemunhas imediatas, mas é inegável que é uma via de duas mãos. O jornalismo também tem um impacto no mundo. 

A honra perdida de Katharina Blum, do escritor alemão Heinrich Böll, é exatamente sobre isso – como já pode se suspeitar a partir do título. O texto foi originalmente publicado em 1974, dois anos depois de Böll ter sido laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, e ganhou uma nova edição brasileira pela Carambaia em 2019, com tradução de Sibele Paulino.

O livro, que tem jeito de relato jornalístico (mencionando “fontes” e sendo bastante descritivo), narra um episódio na vida de Katharina Blum, uma mulher pouco convencional para o período. Independente, divorciada, trabalhadora, séria. 

A narrativa começa em um carnaval, quando Blum vai a uma festa na casa de uma amiga e conhece um homem que acaba levando para casa. No dia seguinte de manhã, é abordada pela polícia, que buscava o moço – um suposto bandido. Ela alega que ele saiu durante a noite sem que ela tivesse percebido. A polícia, irritada com a fuga do bandido, leva-a para interrogação. 

Sentada de frente para o juiz, Blum começa a ter sua vida escrutinada. No começo, as perguntas parecem coerentes: sobre quando conheceu o homem em questão, o que sabia sobre ele, se o ajudou a fugir. Mas as perguntas ficam cada vez mais pessoais e tangenciais: desde quando uma governanta pode ter uma casa própria? E quem são as visitas masculinas noturnas que os vizinhos alegam serem frequentes? Quais trajetos justificam o consumo de gasolina de seu carro?

O fato de ela não ter o estereótipo feminino de então (esposa, mãe, frágil), e sim decidida, independente, com vontades sexuais, faz com que ela se torne cada vez mais suspeita para os olhos do público, ainda que seu relato pareça adequado. Essa posição é reforçada pelo JORNAL, que distorce suas falas e cria um espelho bem mais sensacionalista de quem ela é. 

Não quero entrar em spoilers, mas a imagem sensacionalista de Blum criada pelo JORNAL começa a impactar sua vida concretamente. Ela recebe ameaças, cartas de repúdio, perde a liberdade de ir e vir e a credibilidade necessária para executar seu trabalho de governanta. O desfecho mostra mais ainda até que ponto esse tipo de cobertura midiática pode impactar os acontecimentos do mundo. 

A honra perdida de Katharina Blum é uma obra curta, de capítulos curtos e ritmo acelerado. O livro se lê quase como uma antologia de textos jornalísticos que narram não só os fatos, mas também as outras narrativas jornalísticas, o que permite uma reflexão sobre o que escrevemos, publicamos, lemos e o impacto disso no mundo. 

O posfácio do livro, escrito por Paulo Soethe (que foi, por sinal, meu professor), detalha o contexto histórico de publicação do livro: o clima de instabilidade provocado pelo “terrorismo” de esquerda e seu combate tão (ou mais) violento por parte do estado gerava uma polarização amplamente potencializada por jornais e fake news. Nesse momento, Böll opta por se posicionar contrário ao jornal sensacionalista Bild, que atribuia um assalto a banco a um grupo de esquerda sem provas suficientes. Entre um processo contra o jornal e a difamação sofrida pelo escritor em retaliação, a situação se estendeu por dez anos e gerou vários debates sobre liberdade de imprensa e manifestação. 

Vários livros começam com disclaimers sobre o estatuto fictício de um determinado texto. “Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles” é o aviso padrão da Companhia das Letras, por exemplo. Böll não deixou a oportunidade passar: “As personagens e o enredo desta narrativa são puro fruto da imaginação. Se, em descrições de certas práticas jornalísticas, surgirem semelhanças com as do jornal Bild, isso não se deu por acaso ou premeditação; foi, isso sim, inevitável”.  

FICHA TÉCNICA
Livro: A honra perdida de Katharina Blum 
Autor: Heinrich Böll 
Tradutora: Sibele Paulino
Editora: Carambaia
Páginas: 136


Gisele Eberspächer é jornalista e tradutora. Vive entre livros e não sabe se gosta mais de café ou chá – então toma os dois compulsivamente. Fala sobre literatura no canal do YouTube “Vamos falar sobre livros?” desde 2012.