O objetivo da eternidade é buscar sua autoafirmação na memória, e o objetivo da memória é o de existir sem a busca incessante da eternidade. Proust digladiava-se numa busca constante a um tempo perdido, um tempo passado, escrito, dito, etc etc. Joyce revivia as chagas de seu passado a partir de personagens autobiográficos, bem como a partir de esboços e pedaços que ele fazia questão em entregar a seus personagens distintos. Com o mais famoso caçador de borboletas de todos os tempos, tal afirmativa não poderia ser diferente.
Dono de um estilo mágico e único, Nabokov conseguia criar frases multidimensionais, donas duma complexidade monstruosa, ramificando-se como se fossem árvores, causando o caos do outro lado da mente do leitor com o simples bater de asas de uma borboleta. A teoria do caos é, afinal, o que Nabokov cansava de repetir em seus escritos. Este caos irônico e estilístico, refinado a um ponto que companhias de petróleo invejariam, atinge a obra de Nabokov em sua essência, espalhando-se, logo após, para todo o conjunto estrutural literário.As personagens de Nabokov, seu enredo, o tempo, espaço e tudo que sua professora de redação escreveu no quadro, aqui são infectados por esta lepra linguística a qual nosso homem-lepidóptero tanto procurava demonstrar de forma implícita e explícita ao mesmo tempo. Nabokov escolhia suas palavras com a perfeição de um cientista que necessita de um microscópio para encontrar o órgão mais microscópico ainda de uma espécie muito mais microscópica.
Esta análise científica sendo aplicada ao texto, característica comum dos escritores modernistas, possui sua representação em Nabokov. A união de letras formando um sentido lógico, também chamada de palavra, era, sob a visão de Nabokov, uma belíssima borboleta voando no meio de tantas outras, esperando apenas a rede do colecionador ávido; e, como Nabokov era um cientista aplicado, é tolo pensarmos que Nabokov escolheria borboletas feias e comuns para comporem seus livros. O homem que descobriu o gênero Echinargus, entre outros, faria questão de criar os mais belos panapanãs, adornados de pérolas e ouro, crisocola, turquesa e milhares de outras joias combinadas e fundidas – tudo para se recriar a natureza a partir da simples sobreposição de asas.
Mas, se tanta tinta foi gasta nesta descrição pormenorizada da linguagem, é porque temos, evidente, um motivo. A linguagem em Nabokov é fator decisivo, e falar deste autor sem mencioná-la seria a mesma coisa de se falar em Orwell sem se citar a desumanidade humana. Em A Pessoa Em Questão, temos, em especial, uma elevação linguística que atinge seus tons mais altos. Trata-se dum livro que inteira o alto escalão literário, chegando ao lado de Fogo Pálido e Ada Ou Ardor, Ulisses ou Retrato do Artista Quando Jovem, 1984 ou Admirável Mundo Novo (…)…
No entanto, o fator linguístico não é o único no livro. Não se trata de um livro de valor unilateral. Aqui temos a lúgubre história de um autor exilado, que viu sua Rússia natal ruir com as botas dos comunistas. Alie esta visão com a opinião forte e a veia irônica pulsante de Nabokov, e terás críticas ácidas e altamente corrosivas. Nabokov não hesita em chamar os comunistas soviéticos (atenção! Os comunistas soviéticos!) de estúpidos e dementes, assim como não hesitou em chamar Dom Quixote de um livro antiquado, assim como não hesitou em dizer que Faulkner era superestimado.
Reviver a vida de Nabokov, pelo próprio Nabokov, é, automaticamente, reviver e inteirar a vida de vários de seus personagens… O tom autobiográfico que Nabokov, assim como Joyce ou Proust, emprestava a seus personagens era e ainda é altíssimo. Se vemos Nabokov, o jovem poeta, iniciar sua carreira literária, temos, automaticamente, um Sebastião Knight e sua reclusão artística. Se vemos Nabokov, o jovem jovem exilado, temos, automaticamente, um Humbert Humbert procurando suas ninfetas sem eira nem beira. Se vemos Nabokov, o jovem apaixonado, temos, automaticamente, Ganine obcecado por sua Machenka.
No texto autobiográfico de Nabokov, somos simples borboletas que voam e são constantemente capturadas pela técnica de um dos maiores estilistas de todos os tempos. Pobres de nós, leitores infantis e infandos, que caem nas armadilhas variadas e mui bem engendradas! Tudo que nos resta é aguentar o escalpelo do narrador, esperando o após e suas glórias vindouras, as glórias de ser uma espécime duma espécie rara: a espécie de leitores que leu um dos mais belos livros de Nabokov, um dos mais belos livros que já foram escritos…
Nota: A Pessoa em Questão (Uma Autobiografia Revisitada) foi publicado pela Companhia das Letras em 1994 e que no momento encontra-se esgotado. Para outros títulos do autor lançados pela Companhia, basta clicar aqui.
Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Companhia das Letras
Sobre o autor: Matheus “Mavericco”, nascido em Goiânia City, este fidalgo cavaleiro M**** possui como objetivo a proteção do mundo das letras e sua consequente elevação, mesmo que para isto tenha que lutar contra moinhos de vento críticos que rodopiam alegres e sempre cíclicos. Formas de contato: por e-mail (sucaatvelha1 at gmail.com) ou então pelo blog “Bar do Seu Oblívio”.
Gostei muito da tua resenha, cheia de estilo e arranhando erudição, hein Mavericco? Espero que continues contribuindo com o Meia.