Resenhar sobre um livro favorito é uma tortura para seu admirador, por considerar que qualquer rascunho escrito não irá fazer jus ao que a obra significa (por muitas vezes tentei escrever sobre: “Grande Sertão: Veredas” e “Cem Anos de Solidão”, por sorte consegui com “A Invenção de Morel” antes que esse tomasse um lugar de privilégio na prateleira) ou por simples ciúme.

Essa tortura segue a minha pessoa desde que terminei pela 4ª vez O Jogo da Amarelinha, primeiro porque gostaria de compartilhar com muitas pessoas o conteúdo de um livro tão rico em personagens e história, mas sem esquecer os pequenos detalhes que ajudaram a construir uma relação tão intima com as páginas. Depois porque é um clássico que traz duas maneiras diferentes de ler (seguindo a ordem de capítulos ou optando por começar do fim e pular as páginas de acordo com as indicações de Cortázar).

Os personagens são construídos através de seus diálogos, das manias que expõem, dos livros que lêem, das músicas que ouvem, suas idéias etc. Seguimos Horacio Oliveira, argentino boêmio que vive na França e faz parte d’O Clube da Serpente (um grupo que reúne artistas e intelectuais de diversas nacionalidades), e que mantém um relacionamento paradoxal com A Maga, uma mãe solteira vinda do Uruguai. O argentino vive diversos dilemas e monólogos sobre seus pensamentos e sentimentos, mostra-se confiante, inteligente e, muitas vezes, arrogante perante os demais. Outra marcante característica é instalar uma falsa ordem pelo caos que procura comparando sua existência a d’A Maga.

Todavia, para ler esse Cortázar é preciso atenção nas informações fornecidas como, por exemplo, as citações de antigos blues (dos anos 20 e 30 como Eddie Lang, Big Bill Broonzy, Dizzy, Ella Fitzgerald, Kenny Clarke, etc) e canções do cotidiano para espelhar o que Horacio vive. Apesar da diversificação de personalidades, e do isolamento de Oliveira, cada personagem aplica uma influência em seus pensamentos. Os diálogos apresentam a idéia de sentimentos e relações como algo tateável, sendo que suas personagens acabam por ser abstratas, porém fiéis à suas convicções, a esse mundo construído em cima de palavras (diversas vezes elas são acusadas de tomarem o verdadeiro significado das coisas).

No fundo – fala Gregovorius -, Paris é uma imensa metáfora.

Ressalto: é preciso saber desconstruir aquilo que nos é apresentado. “O Jogo da Amarelinha” mexe diversas vezes com o que se passa pela mente de seus personagens para que nós, caros leitores fascinados pelas construções de linguagem, podermos julgar e não apenas esperar pelo óbvio: um desfecho qualquer (“A influência da técnica na arte” cita o escritor em certo momento). Nesse jogo imenso que desafia a linearidade, Cortázar lança o desafio de encarar a realidade quebrando os paradigmas das personalidades tanto para quem vive no romance e para quem o acompanha.

Isso só é possível devido a segunda parte da leitura, aquela que acompanha outros fatos para fechar a história principal (que se encerra no capítulo 56), dando novo significado aos capítulos já lidos e uma descoberta para aqueles, até aqui, inexplorados (com a volta de Horacio para a Argentina, novos personagens, citações e recortes de jornais). Ao fim da primeira leitura com certeza é hora de seguir para o outro lado do livro e se perder ainda mais pelo labirinto de palavras e citações apresentado por Julio Cortázar nesse antirromance ou contrarromance.

Antigamente, o homem vivia numa noite serena, permeável, num constante dialogo. Os terrores, que luxo para a imaginação…