Assim como muitas das grandes publicações literárias, Viagens de Gulliver ((para ver o ebook do livro, em inglês, acesse nossa biblioteca)), de Jonathan Swift, é uma obra que passou por diferentes trabalhos de tradução e edição, (além de ganhar até mesmo uma versão cinematográfica) e atingiu diferentes tipos de público ao longo da historia. Debates acerca dessas mudanças não faltam, mas o fato aqui é que, seja em uma publicação mais light ou uma mais agressiva, o livro não deixa de ser memorável.

Se, por um lado, as aventuras do quase-médico-aventureiro e seu contato com diferentes povos desconhecidos da nossa civilização, podem ser vistos de forma infantil e fantasiosa, por outro, a narrativa pode ser tida com uma visão pessimista do universo e do ser humano, uma crítica fortíssima à sociedade, política e religião da época em que o autor o escreveu. O livro transita entre o gêneros das histórias de viagem e da sátira, podendo muito lembrar também, relatos antropológicos.

A edição da Companhia das Letras (que foi traduzida a partir da primeira edição do livro, em 1726), conta com análises e opiniões de Robert DeMaria Jr. e George Orwell, que falam ao leitor sobre algumas das formas que podemos lidar com a escrita de Jonathan Swift. São questões que passam desde fatos históricos, que podem ser identificados no livro, até a minha parte favorita, ou melhor dizendo, a forma que eu escolhi abordar o livro no momento em que tive contato com ele: a sátira que o autor trata de colocar em diversas passagens das aventuras. Acredito que o livro trabalhe com dois níveis de sátira: Uma universal, que critica o ser humano como um todo, e outra mais voltada à corte, religião e política da época.

Talvez pelo fato do livro ter sido escrito no século XVIII e contar não com o básico da História registrada da época, mas muitas vezes com trechos mais específicos da corte inglesa e francesa, eu não me sinta aqui totalmente apta para falar sobre aspectos detalhados. Inclusive, a edição da Companhia das Letras conta com inúmeras notas de rodapé que pretendem auxiliar os leitores curiosos sobre esse ponto.

No entanto, quando eu estou lendo um livro pela primeira vez, chega um certo momento que não consigo interromper a narrativa ( principalmente no clímax) para dar atenção devida a essas notas. É claro que quanto mais se conhece a realidade em que Jonathan Swift vivia, mais conseguimos entender sua desilusão e captar essas sátiras. Porém, ao meu ver, interromper a narrativa e dar atenção exclusiva aos fatos, nos força a adquirir “quebras” no ritmo da leitura e deixar de ver o livro como uma história, passando então a ser só um objeto a ser analisado, sem qualquer tipo de proximidade e conexão.

Acredito que muita gente fique debatendo sobre traduções, edições, e apontando minúcias da desilusão do autor, e, principalmente, tentando descobrir qual é a melhor versão da obra, ficando até meio obcecado por encontrar críticas nas entrelinhas do texto, quando na verdade, se distanciam do fato de que estamos diante de uma obra de ficção que também deve ser vista por sua qualidade de escrita, coesão e universalismo.

É claro que não devemos desprezar o debate, mas ficar somente em torno dele me faz pensar que estamos agindo exatamente como o povo de Lilliput, primeira terra que Gulliver conhece, habitada por “seres humanos” de 15 cm. Essa civilização que entraria numa guerra pela convicção da quebra do ovo de um lado enquanto os Blefuscus queriam quebrá-los da outra extremidade, quando ambos podiam, na verdade, apenas curtir um bom omelete.

Aproveitando exatamente essa passagem, posso retomar aquilo que eu falei sobre o nível da sátira de Swift (universal ou específica). Os Lilliputs e os Blefuscus são ambas civilizações pequeninas em relação à Gulliver. Podemos tê-los como frágeis e indefesos perto de um gigante, mesmo levando em consideração os diversos elogios que o autor faz ao povo de Lilliput. E o que eles estão fazendo? Estão discutindo há anos sobre a extremidade que querem quebrar o ovo cozido. E mais: vão entrar em uma guerra por isso. Ora, analisando de forma universal, podemos ver claramente uma crítica às discussões pequenas e desnecessárias que nossa sociedade passa. De forma específica, sabe-se que isso foi uma crítica ao protestantismo e catolicismo a respeito da transubstanciação.

A minha leitura conta somente com o básico dos fatos históricos, e garanto que isso já é, em minha opinião, o suficiente pra se deliciar com a acidez de Swift. Se eu pudesse dar um conselho a alguém que vai ler o livro, diria que fosse de encontro apenas com o primordial da História da Inglaterra no século XVIII e que se sentisse mais curiosidade e interesse, lesse a obra mais uma vez, com calma e aproveitando as ricas informações das notas.

No fim, “Viagens de Gulliver” consegue ser uma narrativa curiosa. Apesar de algumas descrições grandes e passagens desnecessárias ao meu ver, Swift consegue obter sucesso em seu objetivo. Passando por seres pequenos, gigantes, imortais, grandes construtores de máquinas e até criaturas que vivem pelo bem da comunidade e não conseguem mentir, consegue-se ter uma leitura ora prazerosa e ora incômoda -há quem diga que as passagens longas são propositais, numa sátira ao gênero das histórias de viajantes- bem escrito, coeso, coerente e original, o resultado do livro é a reflexão.

SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. Companhia das Letras, 2010. Tradução: Paulo Henrique Britto. 448 págs. Preço sugerido: R$ 29,50

Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Companhia das Letras

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