Conforme foi possível ver nos artigos que o Daniel Dago escreveu sobre Literatura Holandesa que ainda não possui tradução para o português (parte I e parte II), há uma porção de obras boas por aquelas bandas das quais pouco (ou nunca) ouvimos falar. No quesito literatura contemporânea, no entanto, fomos presenteados recentemente com o lançamento do livro Confetes na eira, da jovem escritora Franca Treur, que saiu por aqui pelas mãos da editora Livros de Safra, com tradução de Cristiano Zwiesele do Amaral.

O livro já é um best-seller por lá, e traz uma história que pode soar estranha perante o senso comum que paira sobre a Holanda, principalmente aquele que a identifica necessariamente com a contemporânea Amsterdam, com suas liberdades e liberalidades. A história de Confetes na eira se volta para um cenário e um tipo de sociedade que destoa profundamente do modo de vida cultivado na grande metrópole holandesa: a trama é focada em Katelijne, a filha do meio dos Minderhound, uma família arraigadíssima nos preceitos de sua fé calvinista e que habita o região campestre holandesa, mais especificamente a Zelândia.

Katelijne tem três irmãos mais novos e três irmãos mais velhos. A pequena propriedade da família se mantém devido à produção leiteira, atividade em torno da qual se desenvolve boa parte do cotidiano da família, desde a preparação do feno e da alimentação dos animais até sua ordenha, além do armazenamento e do tratamento do leite. Para Katelijne sobram, muitas vezes, as atividades domésticas, cuja administração se dá no sentido de prover a energia necessária para a realização das atividades de ordenha e cultivo. O restante do cotidiano se dá, basicamente, no atendimento às missas, atividade que os Minderhound praticam de uma assiduidade deveras fervorosa.

Nas migalhas de tempo entre essas duas atividades (a igreja e a lida doméstica) é que boa parte das pequenas aventuras de Katelijne se dão. Essas pequenas porções de tempo expandem-se na narrativa de Franca Treur, abrindo um pequeno e fascinante mundo particular dentro de um outro, muito mais cinzento e severo. São nos pequenos fragmentos em que algo fora do comum aparece, que subsiste o encantamento de Katelijne, e são neles que repousa toda a narrativa de Confetes na eira.

A visita da protagonista à casa de sua tia numa outra cidade, a chegada de uma família que pede permissão para acampar na propriedade dos Minderhound, as namoradas dos irmãos, as festas na comunidade, os preparativos do casamento, as histórias dos avós etc. são os momentos em que a inocência de Katelijne vai sendo desafiada. Aos poucos sua argúcia, embrionária, vai dando lugar a uma percepção mais apurada e gradualmente ciente de rincões que outrora lhe foram vetados, como a relação entre o pai e a mãe, o passado dos avós e os eventos do mundo para além das cercanias rurais onde vive.

A mentalidade extremamente fechada de comunidades como essa em que vive Katelijne se caracteriza por um conservadorismo que busca obstinadamente manter um certo grau de isolamento (em especial com relação à cidade, tida como um antro de tentações), como pode ser percebido no alerta do professor Wisse:

“Meninos e meninas, não se esqueçam de que vocês são diferentes: nasceram sob a égide do Pacto Divino. Um grande privilégio. É nisso que vocês têm de pensar quando estiverem em breve na cidade, porque ela é uma constante fonte de tentações. Satanás, o sicário original, tem-vos buscado a fim de vos joeirar como o trigo, lê-se na Bíblia. Ele usará de mil expedientes a fim de afastá-los da senda do bem. Vocês têm idéia dos recurso de que ele dispõe?” (p. 125)

ou no comentário da avó da menina sobre vestimentas:

“Para você ver, hoje em dia não se acha mais para comprar nenhuma saia decente. É obra do Satanás, minha filha, tentando a todas as mulheres para que elas só vistam calças.” (p. 173)

Mas não se deixem enganar por aparentes extremismos, Franca Treur matiza essas descrições bastante conservadoras com um retrato positivo das garantias e da proteção que essa realidade proporciona. A maneira como ela retrata sua cumplicidade com os irmãos, ou dos pais com relação aos seus filhos; mesmo quando põe em relevo a beleza do trabalho nesse contexto, em que os conhecimentos e tradições familiares vão sendo transmitidos aos mais jovens numa cadência muito humana e serena, sabemos que estamos diante de uma autora que não se deixa enganar por reducionismos.

O título do livro parece ser muito acertado, pois transmite precisamente o que a vida de Katelijne – e, consequentemente, a narração de Franca Treur – tem a nos mostrar: como mesmo dentro dessa rotina árdua e de tons sóbrios ainda há espaço para festejos, humanidade e um pouco de cor, afinal é nesses contrastes – hora mais conflituosos, hora mais harmônicos – que está a energia e a matéria das histórias. E da própria vida.