Fiquei desconcertado quando li o livro Cães heróis, do escritor mexicano Mario Bellatín. A forma tresloucada e misteriosa com que ele narra os estranhos eventos de seu livro, a maneira como a trama se desenrola, e o enorme ponto de interrogação que resta ao final da leitura são um desafio ao leitor, urgindo que ele use de suas faculdades epistemológicas para estabelecer, naquele emaranhado caótico de elementos, algum tipo de lógica.

Embora Um piano para cavalos altos, do escritor português Sandro William Junqueira não vá tão longe no uso dos absurdos, Bellatín foi uma das lembranças que me vieram a mente quando de sua leitura. O ambiente misterioso, a forma indireta com que as informações são dadas e a construção da trama e dos personagens a conta-gotas exigem do leitor atenção redobrada, e, assim como com Bellatín, atiram o leitor num universo de dúvidas, hipóteses e interpretações.

No vídeo acima o escritor disse que Um piano para cavalos altos é, além de outras coisas, um livro sobre o controle, sendo esse, para mim, um dos pontos nevrálgicos de toda a trama. A história se passa em uma microrrealidade cercada por muros cinzentos, que supostamente protegem os habitantes da natureza, especialmente dos lobos que rondam as redondezas. Trata-se de uma cidade dividida por setores nos quais habitam, dependendo da cor do setor, pessoas de diferentes classes sociais. O governante é o Ministro Calvo, sendo extensões de seu poder executivo o Diretor, que opera uma espécie de prisão e centro de interrogatório/tortura; o Militar Coxo, que patrulha as imediações da cidade. Além desses, vários outros personagens ilustram as ramificações do poder governamental, tais como os soldados que guardam as zonas, os assistentes de interrogatório e assim por diante.

Nesse misterioso e sombrio universo, há ainda a Torre e a Fábrica, onde são cremados os mortos e produzidas empadas. É nessa fábrica que trabalha boa parte dos habitantes da pobre Zona Castanha, que tem esse nome pela cor dominante do lugar, isto é, a da sujeira.

A estruturação dessa sociedade está alicerçada nessa segregação e no controle, via medo e via censura, das mais ínfimas manifestações dissonantes da ordem dominante. A música é legislada, os pensamentos são cerceados, a comida é limitada, a circulação é restrita, algumas práticas cotidianas interditas, e assim por diante. A dominação do governo sofisticou-se a ponto de criar aparatos íntimos de censura, sendo esses um dos pilares de sustentação do status quo, por desigual que esse fosse.

No entanto, mais do que somente descrever a forma como está organizada essa sociedade com relação ao poder e a hegemonia, Sandro William Junqueira se ocupa em contar a história de alguns sujeitos dentro desse ínterim. Dentre os vários personagens que aparecem na obra, os principais são o Diretor e sua esposa, a Ruiva, o Mensageiro e alguns personagens secundários, como a Criada, a Prostituta Anã, o Militar Coxo, o Médico Loiro e outros mais.

O Mensageiro tem sonhos sobre o que ainda não aconteceu. Por sua vinculação com os operários da Fábrica, ele passa a ser considerado um elemento subversivo, de contornos que beiram o messianismo. Sendo apreendido pelas autoridades, ele vem a encontrar-se nas mãos do Diretor, que se ocupa em interrogá-lo. Ao mesmo tempo, porém, que o Diretor conduz o interrogatório, ele se vê às voltas com seus problemas pessoais, como a dificuldade de urinar e a crise conjugal que se estabeleceu entre ele e sua esposa, a Ruiva.

A Ruiva é uma mãe obsessivamente ciosa quanto ao aprendizado musical do filho. Ela amarrou-o ao piano para que ele pudesse aperfeiçoar ao máximo o concerto que tocaria às autoridades da cidade no verão. Ela sofre com a situação conjugal e encontra, nos olhares lascivos que lhe são dirigidos, o adultério batendo à porta. O Médico Loiro é uma dessas opções, e a cada consulta a tensão sexual entre os dois cresce. O Militar Coxo também concorre nesse quesito, mas como um caso fortuito, já que seu contato com o universo doméstico de Ruiva se dá por meio da Criada, com quem mantém um affair.

A generalidade dos nomes e a escolha pela ausência de referências mais precisas quanto aos personagens, lugares, governos e políticas faz com que a trama ganhe características alegóricas. Isso, no entanto, tem desdobramentos que podem ser interpretados como enriquecedores ou limitadores. Por um lado, a generalidade aumenta seu grau de universalização, de modo que os dilemas e problemas daquela realidade ficcional podem ser lidos como sendo de um número vasto de sociedades e governos. Por outro, é precisamente a falta de referências mais específicas que não o dota de um virulência crítica mais direcionada. Não sabendo se ele se baseia na experiência portuguesa atual ou na “natureza” das relações de poder contemporâneas de um ponto de vista mais amplo, o leitor não pode debruçar-se sobre a obra com um olhar mais clínico.

Particularmente penso que Sandro William Junqueira tinha em vista uma gama de elementos dos mais variados que, em seu conjunto, se referem à experiência histórica mais abrangente, sendo, portanto, uma exploração da tessitura das relações sociais e das relações do poder voltada a seus diferentes nuances enquanto um conjunto com vários pontos em comum. A maneira como o escritor analisa a ligação entre a pressão social e a sexualidade é um desses pontos, afinal, numa realidade cerceada como a do livro, a sexualidade torna-se uma válvula de escape poderosa.

No vídeo anteriormente citado, Sandro William Junqueira menciona, também, que Um piano para cavalos altos é um livro sobre o poder do corpo. Acredito que ele tenha sido muito feliz na forma como trata do entrelaçamento das amarras externas com os ímpetos de libertação internos. O papel da Prostituta Anã na história – servindo aos homens daquela realidade ao aplacar sexualmente sua tensão –, a forma como Ruiva explora seus desejos, e a maneira como o sexo se constitui um elemento recorrente e fundamental para compreender as dinâmicas sociais e humanas são indícios de como o escritor estava atento em sua observação empírica dos tempos.

O papel que o Mensageiro ocupa, por exemplo, em oposição ao papel desempenhado pelo Ministro Calvo, encerra uma tensão que opõe, por conseguinte, a crença messiânica – profundamente arraigada no caráter sensível e espiritual dos sujeitos – e a racionalidade férrea – propalada como ideal de poder e de organização. Sem dicotomias, o escritor explora essas duas posturas perante o mundo, revelando alguns de seus problemas, peculiaridades e limitações. A associação da racionalidade com o poder e a coerção, ou as limitações do pensamento puramente espiritual ou sensível são alguns desses dilemas inescapáveis.

Um piano para cavalos altos é um livro de leitura extremamente fluida, mas que não deve ser, por isso, encarado como uma obra simples ou fácil. É um livro para várias leituras e minuciosa investigação. Se as páginas viram-se com facilidade, isso é mérito do autor, que é preciso na escolha das palavras e que possui um tato especial para arrancar-lhes grande expressividade. Conforme visto, portanto, há uma porção de motivos para ler o livro de Sandro William Junqueira.