Vamos dizer que é compreensível que uma pessoa que tenha passado por um grande trauma se mate. Por grande trauma quero dizer: ter vivido um momento de violação física e psicológica infringido por outros, nela mesma ou vista por ela em algum momento, que seja tão horrível e impraticável que lhe abre uma ferida que não é capaz de cicatrizar. Uma ferida que faz da morte uma opção preferível à superação ou convivência com as marcas e memórias. Não é que se espere que essa pessoa tire sua vida, apenas que é possível entender seus motivos – um abuso físico, um bullying, uma perda inconformada, um sentimento de abandono e solidão. As pessoas guardam em si coisas que lhe são caras, e a sua perda é irreparável ou impossível de se conformar em vida.

Ultimamente, o tema do suicídio tem ocupado bastante espaço entre os meus interesses curiosos. Parece que a cada semana são mais recorrentes as notícias sobre alguma pessoa, geralmente jovem, que opta por essa porta de saída do mundo. Não parece, acontece. Só não vemos isso ser muito alardeado por aí – uma convenção jornalística que até hoje nenhum professor foi capaz de me explicar muito bem. Como exemplo, cito duas garotas estupradas por um grupo de pessoas, uma na Índia e outra no Brasil, que não encontraram apoio e ajuda para lidar com essa brutalidade. Muito menos justiça. Preferiram morrer. E o jovem Aaron Swartz, que estava sendo acusado em milhões de dólares por compartilhar arquivos sob direitos autorais na internet, sem poder, caso a acusação fosse confirmada, pagar pelo “crime” de distribuir esse material livremente e sem cobrar por ele. Também escolheu encurtar sua vida. Segundo o Ministério da Saúde e OMS, estima-se que no Brasil aconteçam 24 suicídios por dia – mas o número de tentativas frustradas é ainda maior.

Li faz algum tempo um artigo falando sobre literatura e suicídio no século XVIII, em que a morte autoinduzida era muito presente nos livros e praticada fora deles, atingindo níveis de epidemia. O texto falava até de um anúncio de um jornal da época, que oferecia um ambiente propício para se matar, da forma que o cliente desejasse e com toda a calma e discrição. Ao falar de suicídio e literatura, quem não o relaciona diretamente a Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, ou Romeu e Julieta, de Shakespeare, mesmo sem ter lido? O desespero de um amor impossível, ou não correspondido, que leva o amante apaixonado a declinar da vida pelo romantismo, uma última prova do amor inabalável.

Os motivos para o suicídio são variados, como essa lista bruta de coisas que consegui pensar: perda (de dinheiro, familiares, amor, liberdade, honra), dor (causada em si ou em outros), solidão, medo, livre arbítrio – por que não escolher o momento da própria morte, sair de cena quando julgar melhor? – etc. Esse último caso é o que mais vem me intrigando. O que faz com que uma pessoa aparentemente feliz e satisfeita, com família, amigos, parceiros, hobbies, um bom emprego, prefira abandonar tudo isso? Provavelmente ela guardava, no seu mais íntimo, algum tipo de desespero que certo dia eclode e a leva a pôr a corda no pescoço e derrubar o banquinho. Ou portava uma insatisfação com a vida tão bem escondida de seu ciclo social, descoberta apenas depois da bala entrar em seu crânio e seu corpo ser encontrado com a arma ainda presa à mão. Enfim, estou apenas divagando.

Essa curiosidade pelo suicídio me levou a vários romances que o adotam como tema – nem todos eles exatamente centrais para a trama. Na verdade isso começou com três casos de suicídios com essas características que encontrei em livros que li recentemente, ao acaso, com mortes totalmente inesperadas e sem nenhuma explicação. Dois deles estão em Norwegian Wood, de Haruki Murakami, e outro em O sentido de um fim, de Julian Barnes. Este último até apresenta uma justificativa dada pelo próprio suicida – uma explicação filosófica, mas inalcançável para minha compreensão. Adrian se mata ainda jovem, com 20 e poucos anos, num período em que se definia como muito feliz. Ele era um gênio nos estudos e na observação do comportamento humano. Na escola era o amigo sabichão quieto e recluso, mas de um jeito descolado que inspirava admiração em seus colegas, e não aversão. Sua despedida da vida foi friamente pensada. Era sua hora de morrer, apenas isso. A sua alternativa para uma vida que já tomava por completa e não tinha mais nada a lhe oferecer. Mesmo assim, com tanta autoconsciência de sua morte, nem leitor nem protagonista entendem exatamente como uma pessoa com tantos recursos e nenhum problema aparente escolhe morrer. Não consigo seguir essa lógica, ou melhor, entender como essa ideia amadurece dentro de sua mente, quais os seus motivos e a argumentação que levou a essa “filosofia”, à certeza de que a vida não tinha mais nada a lhe dar até desencadear na morte. Julian Barnes também não explica nada disso.

O mesmo se vê no romance de Haruki Murakami. E, ainda mais obscuro que o suicida de Barnes, os dois jovens de 17 anos que se enforcam em Norwegian Wood não deixam nenhuma carta de despedida para trás. Kizuki, melhor amigo do protagonista do livro, tira sua vida depois de um dia normal em que passou ao lado de Toru. Em um momento ele está lá, bebendo cerveja e jogando sinuca, e em outro não está mais, abandonando sem explicação o amigo, a namorada e a família. Ele é descrito por Toru como um rapaz alegre, inteligente, comunicativo, com um futuro promissor que não foi capaz de se concretizar – enfim, um garoto normal, que não demonstrava refletir nenhum problema de ordem física ou mental.

O outro suicídio presente no livro é o da irmã de Naoko, namorada de Kizuki e amiga de Toru. Também aos 17 anos, também pendurada por uma corda, também sem deixar uma explicação para sua morte ou um adeus. Apenas chegou de sua aula em um dia qualquer, subiu para o seu quarto e não desceu mais para o jantar. Os únicos indícios de algo “errado” poderiam estar nos dois ou três dias por mês em que se trancava no quarto e não saía para nada, nem respondia a sua família. Mas, religiosamente, voltava para a rotina normal, alegre e disposta para ser uma filha exemplar.

O curioso desses três casos é que todos os personagens são descritos como inteligentes, maduros, reflexivos, questionadores e curiosos. Sobre a morte da irmã de Naoko, até se comenta que ela lia demais, e que os livros lhe tiraram a sanidade – da mesma forma que fizeram com que um fidalgo se transformasse no cavaleiro dom Quixote, para imitar os romances que lia com a voracidade de um esfomeado. Sobre Adrian também se disse que morreu por ser muito inteligente, como se o pensamento e a leitura levassem para um único caminho: a conclusão de que não vale a pena viver a vida em todos os seus anos, ficar na Terra para assistir ao progresso – porque progresso não há, ou não é possível, ou levaria a um colapso maior –, se é possível escolher morrer jovem e com a sabedoria que a juventude permite, quando ainda se está no auge.

Naquele artigo sobre suicídio e literatura no século XVIII, há um trecho que diz que os escritores consideravam o suicídio uma prática abastada, própria do rico ocioso. Pois ele dispunha de tempo para pensar sobre a vida e suas discrepâncias, para refletir sobre suas contradições e paradigmas insolúveis. Tempo que o trabalhador não tinha e dificilmente chegaria a ter, pois usava toda a sua energia física e mental para colocar comida para dentro de casa e pagar suas contas e impostos, para sobreviver. O ócio era um privilégio de poucos, daqueles que não precisavam lutar pela sobrevivência, pois já a tinham garantida, assim como os estudos e a leitura, tão engrandecedores que levavam – e ainda levam – a uma nova compreensão da vida e à privação dela em si mesmo.

No livro de Murakami há ainda um terceiro suicídio, o de Naoko, aos 21 anos de idade. Mas tendo duas experiências próximas com esse tipo de morte que deixaram marcas psicológicas tão profundas, é de se compreender que ela não tenha resistido aos seus impulsos suicidas quando as duas pessoas que mais amava também não resistiram. Agora, quais os impulsos dessas outras personagens o leitor desconhece, e apresentá-los nem é o objetivo dos romances. Toru, anos depois, é incapaz de entender o motivo dessas mortes. Prefere apagar da memória a lembrança de Naoko, mas escrevendo para que isso não se perca totalmente, para estar livre de pensar sobre isso, pois tudo está registrado e guardado em algum outro lugar. Já o protagonista de Barnes não oferece conclusão para o seu relato, pois o que conta já está comprometido pelas lembranças esparsas.

Um termômetro social

Outra personagem que se encaixa nessa descrição de jovem-gênio-sem-confiança-em-uma-vida-futura é Esther Greenwood, protagonista de The Bell Jar, único romance escrito pela poeta Sylvia Plath – ela mesma uma suicida, após ser abandonada pelo marido sozinha em um outro país com seus dois filhos pequenos. Diferentemente de Adrian, Kizuki e a irmã de Naoko, a tentativa de suicídio de Esther é frustrada. E diferente também desses outros livros, no romance de Plath lançado em 1963 – ano de sua morte – podemos acompanhar toda a derrocada psicológica da personagem, ver de camarote aquilo que a desestimula e a obriga a se autossabotar – Esther era uma garota prodígio, com uma bolsa na faculdade, textos publicados e premiados, um intelecto à frente das garotas da época, uma versão ficcionada da própria Plath. Esther pode conseguir tudo o que quer, escrever para grandes revistas, ser publicada, receber mais prêmios e reconhecimento, desenvolver um trabalho brilhante na faculdade, porém, por algum motivo, vai aos poucos perdendo o interesse por tudo isso e a confiança em si mesma.

E o que causa essa perda do ânimo de seguir a rotina, de se esforçar no trabalho, que leva uma pessoa a destruir tudo o que conseguiu construir com seu próprio talento?

Isso me leva a outra das minhas leituras incentivadas pelo tema, o aclamado livro de Jeffrey Eugenides: As virgens suicidas. Cinco irmãs (de 13, 14, 15, 16 e 17 anos) tiram a própria vida num intervalo de quase um ano. Começa pela mais nova, Cecilia, que conseguiu alcançar a morte na segunda tentativa, se jogando da janela do quarto na cerca pontiaguda que envolvia sua casa. Termina com Mary, ingerindo remédios até a overdose na casa já desprovida de vida. O romance é narrado por um grupo de vizinhos que se maravilhavam com as irmãs Lisbon, que anos após suas mortes reúnem um dossiê sobre suas breves vidas: seus pais eram rígidos, e após o primeiro suicídio, o confinamento das meninas no pequeno espaço da casa é ainda mais intenso. É possível imaginar um ambiente opressivo moralmente, em que, enquanto todos os adolescentes começam a experimentar a vida, as meninas são privadas dessa experiência. Mas o mistério maior, para mim, está no que Cecilia diz ao médico que lhe atende após a primeira tentativa, em que cortou os pulsos na banheira, quando diz que ela ainda tem muito a viver e aprender da vida: “você nunca foi uma menina de 13 anos.”

Como é ser uma menina de 13 anos, então? Eu, obviamente, já fui uma menina de 13 anos – há mais de 10 anos, e infelizmente não consigo lembrar exatamente o que eu sentia naquela época. Sei que me considerava desajustada, não me encaixava no padrão de comportamento das outras meninas – o inicial interesse pelo sexo oposto, as conversas sobre as mudanças no próprio corpo, as fofocas em grupinho – e nem tinha o mesmo estilo que elas. Isso fazia com que eu me sentisse solitária e com poucos amigos, sim, mas nunca a ponto de pensar em algo que chegasse perto do suicídio com essa idade. Simplesmente não ligava muito para o que esperavam de mim como menina, embora soubesse que o espaço da mulher e a visão dela ainda eram – e são – retrógrados. Óbvio que a Taize de 13 anos e a Cecilia de 13 anos viveram em épocas diferentes, mas o que teria ela para considerar a vida adolescente tão insuportável?

Em um ponto de As virgens suicidas, quase no final, os narradores relembram uma das várias teorias para o suicídio das cinco irmãs:

 

O sr. Hedlie mencionou que a Viena do fin-de-siècle testemunhou um surto semelhante de suicídios entre jovens e botou a culpa de tudo no infortúnio de se viver em um império moribundo. Tinha algo a ver com o fato de a correspondência não ser entregue no tempo correto, com o modo como os buracos nunca eram consertados na rua, com a roubalheira na prefeitura, os tumultos raciais, ou com os oitocentos e um incêndios criminosos ocorridos na cidade na véspera do Halloween. As meninas Lisbon se tornaram um símbolo do que estava errado com o país (…)

 

A Lisbon, de assunto a ser evitado no primeiro suicídio, foram elevadas ao status de símbolo. Elas eram o retrato de tudo aquilo que estava errado na sociedade em que viviam, mesmo que elas não conhecessem integralmente essa sociedade. Pessoas sensíveis ao que acontece no meio em que vivem, que são atingidas por ele mais do que os outros, e por isso são um termômetro de seus problemas. Elas sentiam a desesperança, o desespero, os problemas desse ambiente, os absorviam até darem um fim a eles através do próprio corpo. Penso que é uma forma romântica de interpretar os suicídios das meninas: pessoas tão sensíveis que sentem as mazelas de toda uma cidade ou país e se sacrificam por causa delas – ou por elas, uma interpretação quase religiosa. Talvez fosse esse, também, o motivo da depressão e tentativa de suicídio de Esther Greenwood, que vivia em uma época de ruptura das regras sociais e morais dos anos 1950-60 – grande parte da trama se concentra no que a sociedade espera de uma jovem mulher, estudar para não utilizar o que aprende cuidando da casa e dos filhos depois de se casar. Esther certamente não se via como uma garota normal de seu círculo social, não sonhava o casamento ou os filhos, não se identificava com o padrão, o convencional.

Adrian também vivia em um tempo de transformações sociais, e Kizuki, Naoko e sua irmã vivenciavam semelhante experiência social, cada um em seu respectivo país. Só que o leitor não tem contato com nenhum tipo de interação que os personagens tenham tido com a sociedade como um todo – suas opiniões sobre essas mudanças, sobre a tradição ou sobre o que esperavam do futuro. Sobre esse último nem poderiam ter, pois não contavam com nenhum tipo de futuro, não um em que fosse possível continuar a viver.

Penso agora no que acontece hoje. As notícias e o debate sobre o suicídio estão mais frequentes agora. Estudos de qualidade de vida mostram um aumento nos casos de suicídio em diversos países e regiões do Brasil – aqui as comunidades indígenas são as que apresentam o maior número de casos. Pense nos dramas que essas comunidades vivem, com todos os seus membros vendo a cultura que tanto lutaram para preservar sendo sugadas pela “civilização”. Esta é uma sociedade que, em grande parte, concorda com Marco Feliciano e suas infelizes declarações sobre homossexuais, mulheres, negros etc., com a sua posição dentro do Comitê dos Direitos Humanos – uma incoerência política e ética impossível de não enxergar, com seus discursos que incitam o ódio e a ignorância. Tudo isso reflete no modo como vivemos hoje, ou como enxergamos o nosso futuro. E o que pensamos disso tudo, como vivemos? Com esperança numa sociedade justa, desacreditados ou alheios a qualquer debate sobre isso?

Relatórios da OMS apontam que o suicídio é uma epidemia. Uma epidemia silenciosa. Em 45 anos, os casos de suicídio no mundo todo cresceram 60%, a maioria deles entre jovens – o crescimento maior foi entre mulheres na faixa etária de 15 a 19 anos, a principal causa de morte entre essas meninas. Para os homens, essa é a terceira. Na média geral, o suicídio é a segunda causa de mortes entre jovens no mundo, mais que qualquer doença, perdendo para violência no trânsito e homicídios. Eu, sinceramente, não esperaria isso de um mundo em que vemos a ciência avançar, os direitos de minorias sendo reconhecidos cada vez mais, e as condições de vida melhorando para muitas pessoas. Mas essa é uma visão otimista minha que esconde todos os outros problemas que ainda existem para serem enfrentados, de países que não contam com a nossa liberdade e nossas oportunidades. E lugares em que mulheres, crianças, homossexuais, pobres, etc., sofrem com privações e desrespeito são, ainda, muitos.

Vemos uma grande parcela de adolescentes e jovens adultos desistindo – ou se livrando – da vida por conta de preconceitos, ameaças, traumas, mas essa é só uma parcela dolorosa desses casos. Há muitos outros, infelizmente, que seguem a fila de suicidas de que temos conhecimento através dos compartilhamentos no Facebook. E temos, diariamente, vários exemplos que vão contra a ideia de uma sociedade baseada na igualdade – de direitos, de liberdades, de reconhecimento. E, além disso tudo, há todos os conflitos internos, particulares de cada pessoa, enfrentando dilemas de identidade, afeto, adequação, perspectivas, que para uma pessoa em estado deprimido são tão graves como uma ameaça de guerra nuclear. Não existe problema maior ou menor. São todos problemas. E como conviver com isso tudo?

Utilizo a literatura como uma forma de encontrar respostas e esclarecimentos sobre quase todos os assuntos. Isso não é viver fantasias ou ignorar a realidade, muito pelo contrário. Porque além de um entretenimento (como é saudável que muitos a tomem hoje), a literatura é um registro de nossa história social. Ela é um escape que traz autoconhecimento e pode ser um guia para se chegar a uma resposta, ou a uma motivação para superar a vida real, entendê-la, abraçá-la. Ou, no meu caso, pode ainda gerar mais perguntas que respostas, como inicialmente fizeram, levando a discussões e a horas de sono desperdiçadas em tentar procurar um sentido nisso tudo.

 

Sou apenas um pobre-diabo. O pobre-diabo, para ser mais exato. Estou cansado de ser quem sou. Já são anos fazendo cachorradas. Enquanto escrevia isso, fui me dando conta de que eu também tenho muita vontade de desaparecer. Passei em revista todas as possibilidades de suicídio e, depois de encontrar objeções para cada tipo de morte, decidi me fazer cócegas até morrer. (Suicídios exemplares, Enrique Vila-Matas)